A ÚLTIMA ACHA DE LENHA
A ÚLTIMA ACHA DE LENHA
Seu marido dormia sereno morno e enrolado. Olhou-o com olhos grossos: "ah!..., esse meu marido me dói..." - pensou ela. Somente quando o via assim indefeso, ela o sentia mais conhecido. Cobriu-o até os ombros.
Ercilia/2002
A ÚLTIMA ACHA DE LENHA
A noite ia se extinguindo, esgueirando-se silenciosa. Marcante, na umidade fria do sereno, deixaria nos campos seu rastro e levaria segredos.
Antes mesmo que a noite se fosse de vez, dona Zica levantou-se. Esticou um braço e pegou, aos pés da cama, o vestidinho surrado alí deixado ao deitar-se. Vestiu-o pela cabeça, amassando os cabelos despenteados.
Seu marido dormia sereno morno e enrolado. Olhou-o com olhos grossos: "ah!..., esse meu marido me dói..." - pensou ela. Somente quando o via assim indefeso, ela o sentia mais conhecido. Cobriu-o até os ombros.
Na boca, um gosto agridoce. Seus pés encontraram as chinelas; calçou-as e foi à cozinha em passos arrastados.
Dentro de si um não-sei-quê...como uma dor de saudade.
Com as costas dos dedos, percebeu que o caldeirão de ferro ainda estava quente - todas as noites o feijão era levado a cozinhar na última acha de lenha. Remexeu o borralho à procura de brasas. Uma gota de toucinho do fumeiro pingou na sua mão, enquanto empurrava as cinzas com a lenha. Soprou as brasas e espremeu as pálpebras para se livrar da fumaça.
Na soleira da porta, sentou-se à espera da água que pusera a ferver para fazer o café.
Enquanto debulhava uma espiga de milho seca na palma da mão em concha, tentava adivinhar de onde vinha e o porquê daquela dor fininha que ora espremia, ora dilatava seu peito.
Um movimento leve sobressaltou-a. Voltou-se, rápida. Em passos silenciosos, aproximou-se dela o gato preto, seu amigo de muitas horas. Espreitando tudo em volta, sentou-se nas patas traseiras. Dona Zica afagou o pelo macio.
Uma inquietação, um suplício, um arrependimento de pecado, uma dor de medo...era assim que se sentia!
Um facho de luz invadiu a copa da mangueira e esparramou-se no chão, feito poeira de purpurina. A claridade surpreendeu-a. Apertou os olhos e os protegeu com a mão em aba.
No horizonte, o sol despontava atrás do canavial. Uma nesga dourada rompendo a manhã, em compasso lento e contínuo.
Um cheiro bom e doce emanado do canavial trouxe-a de volta ao dia que nascia.
- Aqui sentada, tudo por fazer, e eu nesta lerdeza, pensou.
As galinhas foram se chegando, uma a uma, o corpo avançando, depois a cabeça, pra lá e pra cá, cacarejando. Outras com ninhada vinham à frente abrindo caminho para pintinhos barulhentos, e todos na certeza do milho de todos os dias.
- Amplas de vida, pensou dona Zica, jogando o milho debulhado no terreiro...
Ao redor, tudo era, desrespeitosamente, movimento e vida. O sol, uma bola vermelho-alaranjada, se exibia, se mostrava por inteiro e lambia o orvalho das margaridas e das dálias, no canteiro em frente.
Tudo avançava. Nada parava para questionar aquele silêncio que sentia dentro de si, um desconforto que a incomodava. Deixara de fazer alguma tarefa no dia anterior?
Um casal de pardais aproximou-se e a enfraqueceu mais um pouco...
- Mamãe, a água já está fervendo - gritou a filha lá de dentro da cozinha.
Assustou-se! Sua alma batia-lhe no peito. Sentiu seu corpo, pesado... Limpou as mãos nos lados do avental e entrou.
Não vira o marido passar pela cozinha a caminho do banheiro. Não implicara com sua camisa aberta no peito. Ele não pedira a ela a toalha, ainda com a espuma de sabão no rosto, como sempre fazia.
A lenha ardia, a água fervia. Uma sombra, um sopro passaram pela sua nuca! Arrepiou-se e sentiu náuseas. Frio, talvez, quase um medo. Tempo sem agora. Vazio.
- Mãe, a senhora está bem? Quer ajuda?
A voz da filha trouxe-a de volta à realidade daquele momento do café da manhã. Agarrou o som. Olhou para suas mãos... -Preciso botar a roupa de molho no tanque, lembrou-se.
Deixou-se cair numa cadeira e apertou no peito uma certeza...
Quando criança, uma vez, ela atravessara uma ponte de trilhos de trem, pulando de um para outro dormente. Entre os vãos, lá embaixo, corria uma garganta de rio. Já no meio da ponte, sentiu medo; pensou em voltar para trás, mas não voltou. Por que estaria a lembrar-se disso agora? Precisava pentear os cabelos...
Ainda não ouvira os passos do marido, nem sentira o seu cheiro.
Ontem à noite, entre os lençóis, falaram sobre alguns momentos do passado. - Ah! esse meu marido!... - Tocaram-se como há muito não se tocavam. E riram. Não se lembrava da última vez que riram juntos. Sentiu-se jovem de novo, e bela, e fêmea. Dona Zica prendeu dentro do ventre aquele momento, como se fosse o último, eterno.
O calor do fogo aqueceu-a. Levantou-se. Agora, já não se sentia enfraquecida nem esquisita. Uma certeza, não mais uma sensação a dominava.
Voltou ao quarto, agora mais lentamente. Na cama, seu marido encontrava-se na mesma posição em que o deixara momentos antes. Sentou-se ao seu lado, passou a mão pelos seus cabelos já grisalhos, pelo seu rosto moreno, pelo seus ombros abotoou a blusa do pijama e... Seu rosto estava frio, mas sereno. Beijou suas mãos, cerrou seus olhos e cobriu seu rosto...
Esturato/2009