Atriz dentro da parede

Era setembro. Estava ela diante do espelho a mirar-se. Já estava bem habituada a ouvir elogios mencionando a sua beleza, mas não era certo em suas formulações o que isso significava exatamente. De pé, frente ao espelho. Olhos grandes e bem abertos a olhar no vidro vivo e desafiador um rosto dotado de beleza semi-exótica – porém inquestionável – quase que como procurando pelo alheio. Estava séria e não caberiam sorrisos naquele momento. Na verdade, ninguém em seu estado normal ri diante do espelho. E ela era quase-normal. Quase.

Ela dançava, lecionava, contava histórias e atuava. Mas sentia-se mais como atriz do que como qualquer outra coisa – ah, a legião de artistas que se alimentam dos seus míseros salários de funcionários públicos que parecem ter saído do poema “Não há vagas” de Ferreira Gular. E como atriz era uma excelente filósofa. Dessas que buscam o tempo todo o “algo além” perdido nas entrelinhas da vida. Seu corpo grande e intranqüilo buscava na dança acalmar-se. Sua voz macia buscava expressar-se – a si e a voz em si – para dar sua contribuição ao mundo em forma de som verdadeiro. Ela pretendia que tudo o que viesse a dizer fosse verdadeiro, mesmo que as palavras não fossem suas ou não pertencessem ao grupo das verdades absolutas. Ela autorizava palavras de outros, mas era criteriosa para essa autorização. As histórias que contava eram histórias para um mundo melhor. E atuar. Atuar completava sua paleta de busca por auto-conhecimento. Sua última peça, contudo, não havia tomado a direção do verdadeiro prático, ficando sua atuação presa no nível de intenção. E como quando sentimos que a nossa verdade não atingiu muitos metros além do nosso corpo – não porque não tenhamos sido verdadeiros, mas pelo fato triste de que interlocuções podem ser mais cabos de guerra ou muros, mais isso do que estradas retas. Dar um tempo com teatro seria necessário. Chegando em casa depois da última apresentação, olhou desconfiada para o velho companheiro de vidro reflexivo e tomou a decisão: “Preciso mudar um pouco”.

Novo corte de cabelo. Nova cor. Feito. Olhos nos olhos no espelho mais uma vez – e isso era sempre meio constrangedor, pois não se confia em espelho. Os olhos do espelho pareciam-lhe mortos, como olhos de tubarão. Quase pediu conselho ao espelho, até lembrar que não se pode confiar neles – em nenhum deles. Abaixou a cabeça e virou-se, andando noutra direção, para poder assim melhor pensar. Pensou em viajar. Sair da cidade por uns dois dias. Talvez três. Talvez um primeiro passo para uma temporada bem maior que o imaginável. Fazer mala. Embrulhar-se para viagem. Mala feita. Ser físico devidamente embrulhado. Mulher devidamente embrulhada e estômago também. A essa altura já hesitava em dar uma última olhada no companheiro de vidro vivo. Medo dele. Saiu sem se conferir a beleza. Pés no corredor do prédio, trancou a porta. Elevador ou escada? Escada. Desceu. A descida foi longa, mais do que seria uma subida. Pensou dezenas de pensamentos por degrau, como uma metralhadora giratória cega. Chegando lá fora – no ante-começo de lá fora – perturbou-se com a monstruosa luz cinza da tempestade que se anunciava com suas músicas de vento. Parou. Pensou: “Esqueci algo. Não posso sair assim”. Voltava. Subiu com a mente menos cheia e menos giratória. Desta vez de elevador. Fechadura. Tapete. Portal a ser atravessado rumo ao espelho. Espelho triste pela ausência de sua dona. É isso. Ela era, sem que percebesse ou lembrasse, dona do espelho. Passou um batom vermelho. “Espelho. Meu espelho” – o chamou finalmente de seu. O vermelho do batom lhe trouxe uma súbita alegria. Quase sorria para o rosto que ficava mergulhado na parede, como mágica. Antropologicamente, entendeu porque os índios do século XVI foram vencidos pelos espelhos. Espelhos de mão nos aprisionam dentro do nada. Espelhos de parede aprisionam nossos dobros dentro da parede. Só bebês e animais sabem que quem vemos dentro da parede através do espelho não somos nós. Terminou então de passar seu batom vermelho e fez seu movimento louco: sorriu finalmente para o espelho, com os olhos felizes direcionados aos da outra na parede – a mulher bonita que mora dentro da parede. Alívio. Enxergou a beleza da mulher-gênio dentro da parede, e das belezas dentro de si como mulher pensante de carne, osso e desejo. Fome. Geladeira. Televisão. “Amanhã viajo”, pensou, desta vez alegre e em paz. Na última caverna da alma o doce som dos aplausos. O que houvera antes esquecido era a mulher que morava dentro da parede. Era setembro.

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