Diálogo
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“I’m never gonna be good enough for you” A Fausto Guilherme
Simple Plan Ao som de Zander
“Depois da Enchente”
Era um dia quente de verão. Muito quente. Ele estava sentado na cama, enquanto o outro instalava um ventilador de teto. Conversavam, mas sem contato visual. Sem olho no olho, sem nada que não fossem palavras proferidas ao teto, ou ao ventilador. Era uma conversa séria. Seriíssima. Há tempos não tinham uma conversa daquelas. Talvez jamais tiveram conversa como aquela.
O teto era branco. Ele tentava perder a noção de espaço. Ouvira uma vez que, se conseguisse fazê-lo, seria como se voasse. Ouvia as palavras proferidas pelo outro, soando distantes. Distantes... Sempre estiveram distantes. Talvez nunca tanto como agora, mas sempre estiveram distantes. Os últimos acontecimentos só os afastaram mais. Enquanto ouvia, tentava denominar o que sentia pelo outro. Deveria ser amor. Nunca achou que o fosse. Poderia ser mágoa, talvez....
- Você tem medo de mim – o outro disse de repente.
Medo? Sim, era provável que sim.
- Eu não tenho medo de você – mentiu, num tom que não era desrespeitoso, mas de deboche.
A verdade é que nunca soube. Talvez nunca saberia, talvez soubesse um dia. Anos atrás, muitos anos, demasiados anos atrás seria infinitamente mais fácil traduzir o que sentia pelo outro, em palavras. Mas agora, tantos anos depois, tantas feridas, tantos erros, tantos medos, tantos desencontros depois... As palavras haviam se perdido. Ou, talvez, os sentimentos haviam mudado. Fechou os olhos, aspirou o cheiro de suor, pó, cal, resto de sol... Expirou abafado, para não parecer ignorante. Viu a escuridão das pálpebras, depois a mente tomou o lugar da escuridão e as lembranças o tomaram...
“Me leva pra voar?” – perguntava o pequeno garoto, com os pés sujos de areia e o cabelo demasiadamente claro, a pele já um tanto vermelha e os olhos começando a ficar marejados por causa da brisa marinha.
“Depois que a gente tomar um sorvete!” – respondia o homem, não tão velho, com um sorriso nos lábios e um brilho bonito de se ver nos olhos que não se sabia a cor. Pegava o garoto no colo e ia andando, fazendo cócegas, gracejando...
- O que foi? – perguntou o outro.
- Hein? Nada! Nada... – respondeu ele, emergindo dos pensamentos, um tanto assustado com tal abrupta interrupção. “Estava pensando”, pensou em dizer, mas manteve-se quieto. Soprou o próprio peito, para espantar o calor, passou as costas da mão na testa, para tirar o suor, inspirou fundo mais uma vez, expirou abafado...
- Você tem que começar apensar mais nas suas atitudes. – ele ouviu de uma voz próxima. Direcionou os olhos para o lado e viu o outro sentado à beira da cama, de costas para ele. Nem percebera a aproximação. Ignorou, voltou a pôr os olhos no teto. Fechou novamente os olhos. Novamente a escuridão transformou-se lentamente em memória.
“Corre, vai começar!” – dizia o garoto, quase da mesma idade do primeiro.
“Já vou! Deixa eu pegar os salgadinhos. Vai apertando Rec!” - respondia uma voz que parecia vir da cozinha, onde quer que a cozinha fosse.
“Tá bom!” – respondia o garoto, deitava-se e colava os olhos na televisão. Não muito tempo depois, surgia o mesmo homem, não tão mais velho, com um pacote de salgadinhos, daqueles que não vendem mais, e dois copos de refrigerante. Riam-se. O garoto deitava a cabeça no peito do homem, segurava, cuidadosamente, o copo com as duas mãos, às vezes com uma, para poder pegar salgadinho, mas com os olhos sempre atentos à T.V.
Ele abriu novamente os olhos. Estranhou uma ou duas lágrimas que se preparavam para escorrer. Esfregou depressa os olhos. Sentia um aperto no peito. Mas isto ele sabia nomear. “Saudade...” – pensou ele, contendo um suspiro. Olhou para o outro. Viu uma parte dos olhos dele. Aqueles olhos de cores indecifráveis. Um tanto verdes, um tanto castanhos, numa mistura que não terminava em cor alguma. Variava conforme a luz. Fascinavam-lhe aqueles olhos. Tão indecifráveis quanto o dono. Olhos firmes, de quem lutou muito. Olhos que se negavam a chorar. Olhos que raramente exprimiam tristeza, saudade, ou qualquer outra coisa que representasse fraqueza. O outro se orgulhava daqueles olhos; ele os temia. Eram frios, aqueles olhos. Ao menos quando o olhavam. Ele jurou em pensamento jamais ter olhos como aqueles, por mais que sofresse, por mais que lutasse, por mais que.
Ele imaginava o que o outro pensava. Talvez não pensasse em nada, exceto no ventilador, no calor, no sentimento oblíquo que tinha por ele. Será que o outro se lembrava de coisas? Será que o outro sonhava coisas quando era jovem, também? Que planos o outro tinha quando era mais jovem? Era impossível dizer. Nunca falavam sobre o passado do outro. Não detalhadamente. Também não falavam de suas memórias, de seus planos. Tentaram uma vez falar dos planos dele, mas em vão. Suas mentes eram muito distintas. Talvez nem tivessem nada em comum agora, fora o calor e a pressa de ver o ventilador montado, no teto. Ele olhou para fora. O céu já estava quase totalmente escuro. Somente uma parte violeta, púrpura, restava, ao longe. Decidiu fechar os olhos novamente, mas antes de fazê-lo, desta vez, as lembranças chegaram.
“É como se houvesse um abismo entre nós” – explicava o adolescente-rebelde-sem-causa para a mulher que o olhava não com mais interesse que preocupação.
“Como assim?” – perguntou ela, tentando parecer natural.
“Sei lá... Sei lá. Só sei que eu quero me aproximar dele e diminuir esse abismo. Mas não adianta eu pular sozinho, não dá pra chegar do outro lado, entende? Ele tem que pular também.” – explicou o jovem, da forma que achava ser suficientemente clara. A mulher o olhou com indignação, medo, sentimentos sobre sentimentos, aqueles olhos que dizem “Depois de tudo o que eu fiz...”.
O devaneio se desfez e chegou outro em seguida.
“Quer conversar?” – perguntou o homem, já com alguns cabelos grisalhos, aqui, ali, outro acolá...
“Não. Deixa quieto.” – respondeu o adolescente-na-pior-fase-da-adolescência, querendo dizer “Quero, senta aqui, escuta, só escuta, me abraça, eu te amo”, mas, claro, um adolescente não diz coisas assim.
“Tá bom, então” – respondeu o outro, sem saber o que se passava na cabeça daquele jovem.
- Se você quiser continuar aqui, tem que respeitar as regras. – disse o outro, com um tom, talvez, de melancolia misturada com autoridade.
- Ah... – disse ele, não como compreende, mas num tom inconformado, sem conseguir dizer mais nada.
Ele decidiu não mais fechar os olhos, talvez para evitar as lembranças. Acompanhou um pernilongo percorrendo o quarto, passou em frente aos seus olhos, mas não fez menção de pegá-lo. Deixou que o pernilongo voasse, pra onde quer que fosse. No íntimo, desejava ser aquele pernilongo. Mesmo com o risco de levar um tapa, morrer, quantos dias vive um pernilongo? Não importa, desde que pudesse voar muito, pra longe. Não lembrava desde quando sentia aquela vontade de ir pra longe, mas sabia que sentia frequentemente. Perdeu o pernilongo de vista. Só então percebeu que o outro havia terminado de montar o ventilador e preparava-se para subir a escada.
- Quer ajuda? – perguntou ele, só por perguntar.
- Não precisa, não. Já estou acabando. – respondeu o outro, num tom que ele jurava ser de ternura, mas não podia ter certeza.
Na verdade eles queriam se aproximar mais um do outro. No íntimo, ambos sentiam falta do outro. Isso quem diz sou eu, por pura especulação, mas com quase absoluta certeza. Qualquer um que os visse assim, que tivesse acesso à memória de ambos, saberia do que falo. Mas tenho apenas acesso à memória de um deles e isso é estranho para quem narra algo. Na verdade, eles queriam ir à praia, olhar as moças passando, ir ao cinema, pescar, essas coisas que caras como eles fazem. Mas, entre os dois isso parecia ser impossível. O que é algo muito triste, acredite.
Engraçado, mas eu não sei como terminar essa história. Talvez porque ela não teve uma conclusão ainda. Não, isto não é um recurso machadiano de dar graça a uma narração; é um fato. Sinto muito se você perdeu seu tempo, lendo isso tudo que escrevi. Mas, quem sabe, você conhece uma história semelhante a esta (por mera coincidência), ou essa seja a sua história. Então me ajude dando a esta história, que pode ser a sua, ou a de um conhecido, um final feliz.
William G. Sampaio [15/3/2009]