OS SEGUIDORES DO TEMPO

Por uma vez, ela tentou escapar aos ditames temporários dos relógios que, por todo o lado, ela julgava rodearem-na e, horror dos horrores, até a perseguir.

Tinha enraizada esta ideia há já algum tempo, embora desconfiasse da própria desconfiança em si...

Começou a ter certezas pouco paranóicas quando, aproveitando uma rara oportunidade, se isolou numa ilha supostamente perdida na Polinésia.

No primeiro dia, julgou estar no paraíso, por quase nada de humano ver, a não ser a sua cara-metade.

Mas a partir do segundo dia...os navios que ocasionalmente passavam no horizonte distante, pareceram-lhe ter demasiado ritmo...Sim...Passava um de manhã, outro à tarde, e por fim lá vinha o do anoitecer...

Decidiu abstrair-se e abdicar da visão do mar...O lago interior da ilhota, bem cercado por árvores, passou a ser o local de repouso e banho. Perdida no pequeno areal, perdeu o olhar no céu limpo, até reparar na demasiada frequência de aviões, voando para destinos longínquos, a grande altitude, mas devido à invulgar clareza do ar, perfeitamente visível!

Foi o início do descalabro! De seguida, tudo na plácida existência passou a ser objecto de horror: desde as árvores, que empurradas pelo vento na sua rotina diária, diária…a todos os segundos, a todas as horas, a todo o tempo… faziam barulhos sempre na mesma altura ! Tal como os insectos, os animais que podia ver! Todos dispunham de uma rotina originária sem dúvida no seu relógio biológico! Até ali existiam relógios, biológicos, mas relógios!!!

Mesmo o insuspeito, e tantas vezes apreciado pela tranquilidade que devolvia às pessoas, do som da água a cair a aterrorizou. Em breve, na sua cabeça demasiado matematicamente temporal, adivinhou a infernal cadência de segundos. O namorado, conhecedor desta espécie de mania, bem tentou demonstrar-lhe tal absurdo. Chegou ao ponto de alterar ao máximo tudo aquilo que a pudesse entrar naquela espécie de transe; o homem desdobrou-se numa série de actividades ao ponto de estragar as próprias férias. Desde fazer um enorme tapa-vento, a alterar o próprio curso dos ribeiros existentes, etc..., em vão, ela arranjava sempre maneira de adivinhar novos marcadores temporais!

E ela ficou de tal ordem, que o regresso se vislumbrou como única solução, para o fim de um martírio vivido assim a dois.

Prevaleceu a lógica do mal menor...Ao menos na cidade ela escusava de procurar o tempo marcado nos mais ínfimos recantos. Ao menos lá ela saberia onde encontrar o seu fantasma...

Mas o pior...o pior foi quando ela se apercebeu que mesmo os seus gestos mais íntimos poderiam, também eles, serem marcadores desse tempo! Para resolver este terrível incómodo, optou por uma quebra radical na rotina de vinte e tal anos.

Assim, mudou o tempo de duração do banho matinal, constante e irregularmente, bem como toda a restante higiene intima.

Por sorte ela era estudante, o que flexibilizou os novos hábitos. Como estava longe de ser incomum o absentismo entre esta classe, a sua aparição ocasional não causou qualquer tipo de estranheza. Os problemas surgiram quando se insurgiu contra os horários e marcação dos exames. O que redundou num semestre de chumbos...

Este radicalismo assumiu tais proporções, que em breve mesmo o seu espaço lúdico foi invadido. Quando reparou ter o mesmo ritmo na ingestão de qualquer bebida, alterou-o de imediato, passando a alternar pequenos com grandes goles, ante a indiferença de quase toda a gente, pois nestes domínios, tal passava despercebido, excepto aos amigos mais próximos que lhe tiveram de aturar várias bebedeiras, à custa da sua não disciplinação alcoólica, visto que também alterava arbitrariamente dias sóbrios com os outros...

Por fim alguém teve o bom senso de a enviar a um psiquiatra.

Mas ao fim de três sessões ela desistiu...As consultas tinham a duração prevista, o que a irritou de sobremaneira, embora na maior parte do tempo pouco ou nada dissesse, por se achar a criatura mais normal do mundo, aliás, a única não escrava desse tempo.

Antes do delírio final, quis mudar o nome de família, mas a ameaça de ser deserdada foi o suficiente para a sua parte saudável por termo ao devaneio.

Acabou por dar em doida, o que era de resto previsível, vivendo os seus últimos dias, e a seu pedido, num quarto às escuras e em absoluto silêncio.

Como viveu daqui a muitos anos, e os pais tinham posses para tal extravagância, foi criado um fundo, a permitir-lhe ser sepultada no espaço, onde nunca seria chorada pelas gerações de familiares que se sucederiam, onde o tempo passava quase sem se notar.

As origens da extirpe remontavam à nativos da América do norte, algo só perceptível na tradução do estranho nome de família, qualquer coisa como “Seguidores do Tempo”

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 29/09/2009
Código do texto: T1838285
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