O BALOIÇO

-Doutor, que hei-de fazer? Recebi a confirmação do exame esta manhã. Tenho cancro, e já nada há a fazer. Dão-me meses de vida. O que será dele? Vai ficar só...

O rosto da mulher denotava uma imensa tristeza e frustração. Nos últimos tempos envelhecera bastante, minada como estava pela doença e por anos e anos da esperança adiada em que ele voltasse para o seu mundo.

Ciente disso o médico embora quisesse aligeirar a questão, por imperativos éticos e pessoais, como sempre, foi directo:

-Não se preocupe, infelizmente ele já não está cá há muito tempo e, muito francamente, não creio que volte. A única coisa que lhe interessa é o baloiço.

-O baloiço, sempre o baloiço...Nunca cheguei a compreender...mas nunca pergunta por mim...?

-A situação continua igual, igual há de trinta anos. Não fala, não olha para nada, limita-se a estar ali, sem parar. Quando o tempo está mau fica sentado numa cadeira, a imitar o mesmo movimento do baloiço, à espera que este fique disponível, para de novo voltar. Apenas quando verifica que não está em condições é que nos pede material para o arranjar, fazendo-o exemplarmente, com uma destreza que nunca vi, é um autêntico artista.

Sabe, um destes dias os meus filhos vieram até aqui e, aproveitando um dos raros momentos em que o baloiço estava vago, usaram-no e ficaram espantados pela perfeição do brinquedo. O mais novo, que é dado ás invenções, examinou-o atentamente e disse nunca ter visto coisa assim, pedindo-me um igual...Quando se foram embora eu próprio pus-me a observá-lo e de facto aquilo é trabalho de mestre. Desde a corda ao tamanho do banco, tudo tem uma medida perfeita, e até a distância do solo...se alguém se desequilibra a coisa está feita de maneira a evitar ferimentos.

-Estive a ler a ficha dele, mas lá não está a profissão. Diga-me, ele por acaso não era carpinteiro, ou trabalhava em artes manuais?

-Não, até aquilo...-Durante alguns segundos ela parou, o tempo suficiente para limpar algumas lágrimas que não podia deixar correr cada vez que se lembrava do passado -Ele era padeiro...Se calhar nasceu com o jeito para engenhocas, nunca mo disse...se calhar foi isso, mas a guerra roubou-lhe aquilo que poderia ter sido...

E ficaram os dois, a olhar para o fundo do pátio, onde um homem de sessenta e poucos anos se deixava embalar suavemente nesse baloiço, olhando para algures dentro do seu mundo, estranho ao resto, e com uma expressão misteriosa de paz e da mesma tristeza que escurecera o rosto da mulher.

Era um mundo e tristezas semelhantes, mas dramaticamente diferentes das nossas, cuja razão enigmática se encontrava perdida em acontecimentos que mudaram a sua vida para sempre, há cerca de quarenta anos.

Artur nascera numa aldeia, filho de agricultores, dois anos depois do fim da grande guerra.

Tivera a infância possível entre alguma fome e muito trabalho, estudando o possível, e largando os bancos da escola mal soube ler e escrever. Os tempos eram duros e a família mal tinha dinheiro para se bastar a si própria, quanto mais para fazer um dos seus filhos doutor. Por isso, pela idade dos onze anos já percorria os campos seguindo o destino dos pais, ganhando mais calo e dureza que escudos, sempre poucos para tanto suor. Mas enquanto ganhava corpo e destilava suor, Artur procurava algumas alegrias típicas da infância, fazendo o que todos os miúdos faziam para enganara pobreza, fazendo eles próprios os brinquedos vindos da única coisa que tinham em grande quantidade, da natureza. Entre todos os divertimentos ele elegera o baloiço, especializando-se na arte simples mas concreta de os construir, com os serrotes e restos de tábuas que conseguia arranjar. Assim, enquanto os seus amigos se entretinham em épicas e mortais batalhas entre índios e Cowboys, ele enfastiava-se, afastando-se discretamente e indo para o baloiço onde passava as suas horas livres. Lá, ele viajava para bem longe dali, para outros lados, para lugares que vira nas poucas revistas com fotografias ou livros com gravuras. Embora pessoalmente não ambicionasse para o resto da vida mais do que os pais já tinham, sonhava nessas viagens por onde a imaginação infantil nos leva.

Nem mesmo quando os primeiros namoros começaram a substituir as brincadeiras de infância ele se conseguiu afastar totalmente. Claro que naquela altura foi preciso dominar o impulso e fazer a coisa de maneira recatada, pois já começava a ter idade e corpo para se dedicar a coisas mais sérias, e, além do mais “um homem não anda de baloiço”-como lhe zurzia aos ouvidos um pai consciente da estranha paixão do filho.

Assim, Artur no final do dia, e depois de estar com a namorada lá arranjava tempo para mais umas voltinhas, num canto onde sabia não ser visto por ninguém. Entretanto os amigos começaram a casar e a ter filhos, e tal teria sido o seu destino se não tivesse chegado a guerra. Ainda pensou em abaular para França, mas a Guarda pareceu-lhe farejar a ideia, passando a ir mais vezes à terra do que o habitual. Segundo se dizia, o facto de um primo seu em idade das inspecções ter desaparecido levantara suspeitas, e por isso a vigilância fora apertada. Se ele fosse mais aventureiro o salto até seria possível, bastando para isso aproveitar a noite para a fuga, mas Artur nunca fora muito temerário, preferindo sempre jogar pelo seguro, pelo que preferiu o risco da tropa ao de ser apanhado. Afinal comida nunca lhe faltaria, e com um bocado de sorte fugia-se ao mato. E foi essa fuga que atiçou a imaginação da noiva que lhe pôs na cabeça a resposta à pergunta sobre a sua profissão -Iria responder ser padeiro, pois quem faz o pão não pega em armas.

Foi assim que Artur deu consigo a desembarcar no Ultramar com o impedimento de padeiro e o espírito livre das aflições bélicas.

Para ele e para a família a decisão pareceu ser a acertada, pois passava os dias na tranquilidade dos fornos e alguma ronha à mistura, que lhe permitiu voltar aos baloiços, pois mal se apercebera que, pela primeira vez na vida tinha mais tempo do que até ali dispusera, decidiu dar uso a este, consumindo-o em cartas à noiva e...aos baloiços. Como em tempo de guerra ninguém parece ligar às maluqueiras da tropa, o facto de se baloiçar alegremente numa das árvores da parada não despertava mais do que sorrisos divertidos, dado até ele ser bom camarada, nunca recusando noitadas ou, de vez em quando, acumular o serviço dum amigo mais necessitado.

Havia tipos que matavam o tempo a beber, outros em mulheres, a dormir, ouvir música ou outra coisa qualquer, e havia ele, com o baloiço.

Por essa altura os sonhos de viagens foram substituídos pelos da terra, da futura mulher, e por planos para o futuro. No baloiço havia qualquer coisa que o fazia sair dali, para o futuro, como se o tempo passasse mais rápido no movimento pendular, e por isso, quanto mais saudades tinha, mais tempo passava no baloiço, faltando até à promessa de uma carta por dia que ela o obrigara a jurar.

Na monotonia suave desta rotina ia queimando o tempo de tropa, até ao dia que a rotina acabou.

Precisavam de um padeiro para outro quartel, e como até se dava o caso de haver gente a mais neste oficio por aqueles lados, deu com ele a arrumar a mochila deixar a cidade e para o mato, onde não deveria ter chatices de maior.

Apesar de no novo poiso ter sido alertado para a eventualidade dos guerrilheiros não andarem muito longe, Artur continuou a rotina anterior, arranjando de imediato o providencial baloiço, cujo único inconveniente, por falta de espaço era estar a meia-dúzia de metros de uma metralhadora pesada, destinada a defender as instalações modestas que nem um muro mereciam. Por insistência dos oficiais, e a contragosto, todos os militares tinham de praticar tiro de vez em quando, pois em caso de emergência todos combateriam, independentemente das funções desempenhadas, tendo sido assim que a tal metralhadora começou a ser familiar aos dedos deste padeiro, cada vez mais abstraído daquela confusão, apesar de algumas das noites serem preenchidas pelo som da guerra cada vez mais próxima.

E foi tarde demais que ele se apercebeu estar verdadeiramente numa guerra.

Num dia de folga, aproveitara parte da tarde para pôr a correspondência em dia e o fim desta para o baloiço.

Ao girar no ar lembrou-se das últimas notícias recebidas na véspera, sendo as novidades boas -O pai comprara um pedaço de terreno e já lhe conseguira a ajuda de amigos para ajudarem a construir a casa onde iriam morar, mal ele voltasse e casasse. E a pressa da cachopa era tal que já andava a ver modelos de fatos com a modista, apesar de ainda faltarem três meses para o regresso...

Casar. Finalmente, finalmente ia ter casa para si e ser definitivamente senhor do seu destino. Como já ganhara prática na arte do pão estava seriamente a pensar em deixar os campos. Sabia poder ganhar melhor com uma pá do que com a enxada. Na aldeia não havia uma padaria, sendo o pão preparado nos fornos de cada casa, quando os havia...Assim, bastava construir um maior e começar a fazer contas. Não era uma coisa de outro mundo, pelo contrário...E foi com a ideia na cabeça e com esta bem longe dali que ele tardiamente do ataque.

Deu por si entre balas, enviando-o o instinto mais por sorte do que por treino para trás dos sacos de areia onde estava a arma.

Perfeitamente baralhado e com o coração a bater mais depressa do que pensava possível, encolheu-se, procurando estar longe dali, longe dos berros, das explosões, do fumo de odor amargo, dos estilhaços que bailavam á sua volta, da adrenalina que entretanto começara a correr dentro de si, ameaçando-o entrar em pânico. Quis ele próprio acabar com aquilo tudo, e por isso começou a berrar para pararem, para todos pararem e lhe devolverem o silêncio; mas o combate continuou, fazendo os minutos pesarem mais do que o concebível, fazendo os seus nervos estarem à beira da ruptura. Queria acabar com aquilo, com a porra da guerra, com a merda do barulho!

E de súbito tudo parou.

Surpreendido olhou primeiro para o baloiço, a girar no ar pelo sopro das explosões recentes, e de seguida para a sua frente, onde pensava vir a guerra. A noite quase caíra, e a visibilidade era mínima. “Devem ter acertado no gerador”pensou.

Aterrado, e com o pavor que tudo recomeçasse pôs as mãos na arma. Quanto tempo terá passado? Não soube, nunca saberia, sentiu que muito, e à medida que este não passava aumentava os eu medo e a vontade da paz e de voltar para o baloiço.

Por isso quando ouviu um tiro isolado e demasiado longe para ser o reinício do inferno lhe respondeu disparando sobre alguns vultos que viu dirigir-se para si.

E foi o pânico que o fez ignorar a ordem de cessar fogo, continuando a disparar sobre os vultos já caídos, e teria continuado se um oficial não o parasse com um murro que o devolveu à realidade, e à terrível frase que se seguiu.

-Você está louco! Os gajos já se piraram há muito tempo.

-Então os vultos? -Perguntou a medo, julgando ter acertado nos seus camaradas.

-Os vultos? Que vultos?

-Pessoal, alguém fez merda! Limparam alguns dos putos da aldeia! -Ouviu-se uma voz perto deles.

Artur compreendeu, embora preferisse não o ter.

Depois da confusão, e vendo o baloiço raramente vazio, meia dúzia de putos, já demasiado habituados aos combates tinham-se aproximado para dar umas voltas, não contando com um soldado Artur amante de baloiços e em pânico, o calmo e pacífico padeiro transformado em soldado e inconsciente assassino.

Esta fora a única recordação dele.

Logo nessa noite ausentara-se dali, para muito longe, para longe da guerra, para a sua terra e sonhos, para a paz. Infelizmente para ele o corpo continuava ali, pelo que o consideraram louco e o recambiaram para a metrópole onde, apesar de todos os tratamentos não havia forma de voltar.

Os anos passaram, embora ele não tivesse notado, Via apenas o baloiço, tudo o resto, desde os rostos às palavras eram sombras que não compreendia, e por isso não lhes ligava.

Apenas o baloiço, e enquanto este existisse ele existiria.

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 28/09/2009
Código do texto: T1836311
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