AMIGOS

Conto dedicado à minha mais recente Amiguita Melissa, que fez anos um destes dias

Esta é a prenda dela, feito para ela

Como Tu gostas, mais de 90 por cento deste conto é real, o resto tive de inventar por não me lembrar de certos pormenores com quase 20 anos.

AMIGOS

A história passa-se no verão de 1990, o verão dos meus 19 anos e um dos mais loucos na minha vida.

Na altura ainda não fazia noitadas, fumava apenas 5 cigarros por dia, estava quase a acabar o Liceu e desconhecia as loucuras que faria poucos anos depois, depois de entrar na Universidade e depois desta…

Na altura fazia 4 desportos ao mesmo tempo, não andava de carro e não tinha carta, ou seja, estava no apogeu da minha força.

Até ali tinha sido um bom ano, tinha tirado notas razoáveis para um baldas no melhor Liceu de Portugal e ganhara o meu primeiro prémio literário, numa época das minhas primeiras letras, que quase 20 anos depois me levariam a publicar um livro e a ter escrito mais de 2000 poemas e 400 contos.

Sim, de certa forma posso dizer que era o princípio da minha vida, tal como a conheço hoje.

Aquele verão estava destinado a ser um dos mais aventureiros da minha vida, por causa de um simples dia e agitada noite, mas eu desconhecia tal…Sabia apenas que ia fazer mais um Campo de Férias, tal como fazia desde 1986.

O tema para o Campo era “Artes” e o nosso monitor principal era um actor de teatro e cinema, que nos propôs fazermos um filme…Todos ficámos contentes, ainda para mais quando soubemos que iríamos fazer nós o argumento e sermos actores. Para tal era necessária disciplina e métodos, estranhos aos Campos anteriores, e por isso deitávamo-nos bastante cedo, para acordar às primeiras horas do dia, mal o sol rompesse entre as montanhas da Serra da Estrela, a maior de Portugal e onde decorria o Campo.

Apesar de ser um Veterano em Campos, naquele não conhecia ninguém, pelo que tive que fazer amizades novas, e nem por acaso, a figura com que simpatizei de imediato foi o calado Daniel, o genial Carlos, que olhava toda a gente com um ar de quem estava algures mas não ali…Sim, era tocado pela genialidade, e eu tive a sorte de ser um dos poucos com quem ele falava um pouco mais, o que iria precipitar a aventura dai a alguns dias.

Como era norma em todos os campos, estes duravam 10 dias, e a meio destes, fazia-se uma caminhada de mais de 40 km, uma das minhas partes de eleição, pois eu adorava caminhar entre os montes, dado ter sido educado num bairro periférico da minha cidade natal rodeado por bosques (que explorava nos tempos livres), e na terra dos meus avós, uma aldeia onde aprendi que a vida da cidade era deficitária em relação às maravilhas que o campo oferecia, prazeres escondidos nas tardes entre as imensas árvores, prazeres ocultos de beber água pura de uma nascente, e de passeios imensos entre uma natureza que não cessava de me surpreender pela sua beleza.

Sim era o típico miúdo da cidade rendido ao campo.

E foi no campo que desenvolvi uma modalidade que várias vezes me ia tramando a vida: “corta mato” – Isto é, se temos que fazer uma longa caminhada e existir uma forma de poupar o tempo, fazemos um atalho pelos montes sem estradas nem caminhos e cheios de mato, que nos pode ferir as pernas se formos de calções, mas que compensa pelo tempo ganho, o tempo que me persegue e com o qual não paro de lutar…

Ora para tal era preciso conhecer bem a zona.

O que não aconteceu naquele verão…

Durante toda a caminhada, ia tentando arranjar aliados para fazer corta mato quando regressássemos ao Campo, para sermos os primeiros a chegar, e assim os heróis improváveis de uma maluqueira, que iriam impressionar as garotas com as quais namoriscávamos…

Com gentileza, toda a gente recusou o meu convite, até que a cerca de 10km do Campo o Carlos parou-me e disse-me, nas raras alturas que falava:

“Miguel, eu conheço bem esta zona, estive aqui em Fevereiro, e por isso alinho nessa do corta mato, que este passeio está a ser chato e rotineiro, quero fazer uma coisa diferente!”

Ah…um pequeno pormenor nada insignificante: o Campo ficava ao lado de um pequeno rio que vinha das montanhas, pelo que para a nossa aventura ter sucesso era necessário irmos a correr entre as margens de toponímia desconhecida…

Mas, caramba! Alguém alinhara comigo, e, sem nada dizermos a ninguém, afastamo-nos silenciosamente e começámos a dirigir-nos para a margem….

Sim, o plano era perfeito…até que ao fim de 15minutos, e indo o grupo já demasiado longe para o alcançarmos, o mato rasteiro deu lugar a mato com a altura de um homem adulto e cheio de espinhos, obstáculo de monta, se tivermos em conta que eu tinha apenas uma pequena faca para o cortar…Não iria desistir contudo, e era já noite, quando todo cortado pelos espinhos alcancei a margem, numa altura em que ouvimos um barulho vindo do meio do mato, e na obscuridade vimos um par de olhos…Lobo ou raposa…? De nada interessava a ciência que dizia que os bichos não atacavam humanos…Foi a debandada geral para o rio em louca correria, até que nos achámos em cima de uma hipoteticamente salvadora pedra…Altura adequada para uma pausa e para verificarmos o conteúdo da minha pequena mochila, dado o Carlos não trazer nada com ele…: meio maço de tabaco, um caderninho para escrever (ou não fosse eu um aspirante a escritor e já lá tivesse uma espécie de diário), meio pão com fiambre e…nada de lanterna nem de isqueiro que tinha dado a um amigo de caminhada para “aliviar peso”!

Embora fossemos fumadores iniciáticos, aquela altura era a ideal para um cigarrito pelo nervosismo acumulado e porque nos tínhamos apercebido finalmente da parvoíce daquele corta-mato…do mal o menos, dividimos a meia sandes e…

“Olha, o rio está cheio de pedras, pelo que se formos a correr ainda ultrapassamos o grupo…”

Disse o Carlos

“Mas conheces este rio…?” perguntei eu desanimado

“Não, mas os rios de montanha são todos iguais…” a estrada que conheço fica mais à frente, nessa altura saímos do rio e num instante estamos no Campo, antes de todos os outros!” Respondeu animado o meu camarada de aventuras

Feliz por aquelas palavras de esperança, começámos ambos a correr, como se não existisse o amanhã, a correr desalmadamente até que…acabaram as pedras e à nossa frente apenas um vasto lençol de água, e a boa distância outra vez pedras, isto com a noite bem avançada e o caminho apenas iluminado por uma ténue luz da lua que se reflectia nas pedras e assim nos mostrava o caminho…pedras que tinham acabado de desaparecer!

Voltar para trás era algo de impensável, pelo que sem dizermos uma só palavra descalçámos as sapatilhas, tirámos a roupa e arrumámo-la como pudemos na minha pequena mochila.

Iríamos nadar mais de 300 metros dentro de água geladae depois escalar um rochedo que nos levaria às pedras que, esperávamos, se seguissem…E eu ia nadar só com um braço e com as pernas, dado o outro braço segurar a mochila fora de água…

Nunca como naquele momento dei graças aos 2 desportos que praticara por insistência familiar desde muito cedo: natação e canoagem, o que me abilitava a nadar quer no mar quer em rios e a suportar o frio destas…

O tempo já apagou da minha memória o tempo que demorámos, mas lá chegámos ao rochedo, já nervosos e cansados, além de imensamente preocupados com os outros…Naquela altura já estariam no Campo e teriam dado pela nossa falta e de estarem a tentar imaginar “o que era feito daquele par de doidos…”

Por nossa sorte, de facto as providenciais pedras iluminadas estavam por detrás do rochedo…e a pressa foi tanta que ao passar de uma para outra, bati violentamente com o joelho esquerdo numa delas, e o choque foi tão violento que fiquei momentaneamente limitado…

E o pior era a noite…e os barulhos desta…que nos encheram de medo…

Mas o caminho era para a frente, e assim lentamente, por causa do meu joelho prosseguimos durante mais ou menos uma hora até que…de repente um pouco de luz na margem, pouca, mas luz vinda de um poste bem humano, ou seja, um traço de civilização pela qual ansiávamos já!

Naquele momento desatamos aos berros abraçados um ao outro

“Luz!”

“Luz!”

“Luz”

E a margem com o caminho!

Esgotados lá prosseguimos, até que vimos uma casa com mais luz, a casa de uma pequena barragem daquele rio.

Desesperados batemos à porta, esperando um rosto amigo, lume para os cigarros, e quem, sabe, um pouco de comida…

Nada feito, a porta não se abriu…

Em desespero de causa eu ainda berrei

“Não somos ladrões, somos uns miúdos de um Campo de Férias que nos perdemos!”

Nada!

Só nos restava prosseguirmos a marcha pelo caminho agora reconhecido pelo Carlos e relativamente bem visível porque a lua brilhava bastante naquela altura.

Foi nessa altura que o Carlos me levou ao desespero ao dizer

“Pá, não é bem este o caminho que eu conheço…quer dizer…não tenho bem a certeza…penso que à direita deve existir algures uma cortada que nos leva ao Campo, mas não tenho a certeza…”

Ou seja…Se não houvesse a tal cortada, teríamos que prosseguir por aquela estrada mais 20km até ao posto mais próximo da polícia…

Nessa altura tive vontade de fazer algo de muito mau ao Carlos, mas quando começava já a arranjar um plano maquiavélico, e ao fim de mais meia hora de caminho, ele parou misteriosamente, olhou a noite e disse…

“É aqui, a cortada é aqui…”

“Mas tens a certeza…parece-me tudo igual…?”Perguntei num tom de já confesso desespero…

“Já nada temos a perder…”- Respondeu convicto

E foi assim que trepámos o pequeno muro da berma da estrada e demos com um precipício de terra, no fim do qual se avistava a estrada bem conhecida, no fim da qual se encontrava o acampamento.

Não tivemos tempo para festejar, de tal ordem o nervosismo nos invadiu, sei apenas que nos arrastámos até ao Acampamento e entrámos, completamente rebentados pelo enorme esforço físico e mental dispendido, sido acolhidos como heróis pelos nossos colegas mais rebeldes, como loucos pelos outros, e como ídolos pelas miúdas que andávamos a namoriscar…

Na qualidade de responsável pela aventura, dirigi-me à sala do director, (que segundo o que me contaram já estava com os nossos documentos na mão e se preparava para ir ter com a polícia para ver se esta nos encontrava) lhe pedi desculpas e lhe disse que se nos enviasse de volta a casa como castigo eu concordaria com a punição…O Paulo olhou-me bem nos olhos e disse-me:

“Tu és o argumentista do filme, e um dos actores, o Carlos uma das personagens principal…Que é que faria sem os dois? Castigo…pela tua cara vejo que já tens o castigo suficiente, agora vai comer, fumar um cigarro e dormir, que bem precisas…”

Segui o conselho, olhei para o espelho da casa de banho e reparei que tinha o rosto inchado pelo esforço, e quando fumei um cigarro notei que a minha mão tremia imenso…Tinha feito uma descarga de adrenalina, e foi ela a responsável por não me terem faltado as forças e de não ter desfalecido a meio da aventura…

Na altura, quando me fui deitar tirei uma fotografia a mim próprio, que mostra um rosto inchado e cheio de marcas daquela maluqueira…

O Campo durou mais 5 dias e nós fomos os heróis improváveis, pois havia sempre um pormenor da aventura a acrescentar na pausa das filmagens, de um filme que passou no encontro dos Campos de Férias e cuja cópia em Vídeo, a última sobrevivente ao que sei, ainda guardo com invulgar carinho.

Depois…os caminhos separaram-me daquela gente, pois foi um dos últimos que fiz, entretanto fiz a tropa, entrei na Universidade e os meus interesses passaram a ser outros que não os Campos de Férias.

Entretanto fui a um médico por causa do joelho que a espaços me doía; tirei uma radiografia mas esta nada revelou.

“Irá ter dores muito suaves para sempre mas de forma rara e não incapacitante, e que não o impedem de fazer nada, vai ter uma vida normal”. E assim aconteceu, fiz a tropa com bons resultados, a espaços faço desporto e o joelho lá me dói um pouco, mas nada de especial…

Voltei a ver o Carlos no meu segundo ano de curso, durante uma festa de estudantes. Mal falámos, apenas o suficiente para sabermos de nós: disse-lhe em que curso estava e ele revelou-me que estava no final de um e que já fora convidado para lá continuar na qualidade de professor, o que me encheu de orgulho, pois era um dos cursos mais difíceis do Ensino Superior e ser convidado para professor era uma honraria ao alcance de muito poucos, e o Carlos era um deles, o meu Amigo Génio Carlos.

Falámos pouco, mas o seu olhar eternamente distante transmitia o afecto possível.

Nunca mais o vi, apesar de vivermos ambos na mesma cidade.

Entretanto conheci o pai dele que foi meu professor, e com este me cruzo várias vezes, dado trabalhar perto do seu consultório.

Ele sabe quem eu sou e respeita-me, e eu pergunto sempre pelo Daniel.

O Carlos continua como Professor e agora nas férias passeia pelas grandes cidades do mundo, e houve até uma aventura que o pai me contou: o Carlos gosta de passear pelos bairros mais perigosos de Nova York de noite, sem nada a temer, ou sem se aperceber dos perigos da selva urbana, fazendo de certa forma corta mato nela…

Eu…tenho um emprego atrás de uma secretária, também gosto de viajar no Verão pelas cidades da Europa, mas corta mato…a última vez que o fiz foi de carro numa noite de copos e de pouco juízo…O carro foi para a sucata e eu não voltei a conduzir.

Mas recordo agora aquele verão de 1990, um verão em que os nossos sonhos estavam impolutos, o verão da nossa juventude, o verão de todos os perigos, o verão onde ganhei um Amigo.

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 26/09/2009
Reeditado em 26/09/2009
Código do texto: T1832902
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