O FILÓSOFO DO VIADUTO DO CHÁ
As aventuras vividas num período já longínquo que, mesmo tendo já passado alguns anos, ficam retornando como um bumerangue, somente assim assumem o caráter nostálgico. Não significa que apenas o passado perdura na mente ou que o presente vivido tenha menos importância, apenas que valorizar o momento presente somente terá valor quando se tem no passado referências que no liminar da experiência, das alegrias, tristezas, risos e choros derramados farão do momento presente algo comparável àquelas emoções outrora vivida.
Como o dito, hoje popular, "Recordar é Viver", confunde-se com o retorno do bumerangue, significando assim que a recordação nos permite e nos autoriza uma avaliação do já que passou; o aprendizado consiste em colocar na balança da memória e entregar as experiências vividas, como um quilo da fruta mais saborosa, ao cliente/leitor. A aprovação ou rejeição do que se oferece será a garantia do que o que se ofertou. Ao fornecedor/narrador nada lhe será exigido além da sinceridade do que o que se propôs a ofertar venha acrescida da certeza que dele foi dado o melhor possível.
Então, tomado da intenção de apenas agradá-lo com a fruta mais saborosa, o que se seguirá será colocado na feira da memória para que você cliente/leitor aprecie ou rejeite. Se do seu agrado for, convido-o para retornar, mas se não te agradou, lhe peço desculpas, pois sabemos que como numa cesta de frutas, as memórias podem, dado o tempo já passado, prejudicar uma melhor precisão. Mas, reafirmo, nada foi deliberadamente proposital.
Montada a barraca para o que vai à frente, ofereço minhas memórias. Tudo se passara nesta amável cidade. Foi num tempo em que nós office-boys corríamos feito loucos para os bancos, para os cartórios na mesopotâmica missão de cumprir nossa jornada sem deixar uma fatura sem ser paga, de resgatar um protesto no prazo estabelecido ou mesmo de se visitar um cliente com a entrega no tempo prometido. Nesse sentido, passar por situações ímpares nesta cidade não era difícil. Pois, como já disse, nossa tarefa diária era composta das correrias por aqui e ali. O tempo, quase maratônico, exigia uma certa resistência física. De modo que não perceber as coisas ao nosso redor era uma característica.
Talvez por formação, ou mesmo por buscar valorizar a vida no seu cotidiano, sempre me dediquei a observar a cidade no seu aspecto normalmente ignorado. As pessoas, para esse que vos escreve, têm em si a razão de tudo do que somos: são elas que vivem e fazem da cidade o que ela é, são elas que dão sentido real à arquitetura, à pintura e a tudo que se possa conhecer.
Então, imbuído dessa "certeza", conheci no Viaduto do Chá um senhor que ali "morava". Nunca soube seu nome, apenas o conhecíamos por “Filósofo”. Seu "nome" era em razão de ele escrever, em pedaços de papelão, frases que nos remetiam à reflexão. Lembro-me duma que dizia: uma criança criada sem amor será um adulto amargo, rancoroso, depressivo. "Viver pra ele será uma obrigação, não um prazer". Outra que, confesso, ainda me faz pensar no seu significado, mais do que uma frase, reflete um estado de reflexão que somente aos filósofos é permitido. A frase "Eu sou aquele que não era eu antes de mim" se alguma resposta exige, ainda não a encontrei, mas se a ela deve ser dada alguma resposta, provavelmente a busca deve ser feita, como num garimpo, com a paciência que somente aos conhecedores da alma humana se pode reconhecer tamanho privilégio.
Então, sabedor que sou das limitações inerentes ao garimpeiro, e ciente de que numa cesta da mais saborosa fruta poderá existir uma cujo gosto não agradará outrem, aventuro-me nessa teimosia quase patológica em narrar fatos outrora presenciados. E, queiram os bons tempos, como um bumerangue, retornar às mãos deste que, cônscio das consequências por enganos involuntários cometidos, não pedirá o perdão, mas que tenham a certeza que os foram oriundos da mais sincera tentativa de tornar pública uma cena urbana e personagem que naquele momento se tornaram elementos dessa cidade.
Assim, tomado da importância daquela pessoa na vida do outrora office-boy, e tendo tido a felicidade de tê-la conhecido, das suas lições apreendidas, e muitas vezes ter colocado o ouvinte e leitor da suas palavras e letras, nada mais salutar do que saber ter ficado aquele tempo repousado ou adormecido na memória. E o relógio que agora desperta, acordando esse para com outros compartilhar experiência há muita vivida, nada mais espera senão deixar registrado que aquele senhor, nos seus pedaços de papelão, plantou não a semente da mera passagem pela vida, mas, ao contrário, deixou através das frases escritas - às vezes numa tinta parecida de caneta piloto, noutras, a semelhança à giz - lições que a este despertou o interesse pelas questões filosóficas.
E, por isso, caro senhor, tendo já passado tantos anos e considerando já sua idosa idade, creio não mais nos brindar com excelsa sabedoria, mas como sei que o Sol amanhã brilhará, posso afirmar, copiando Sócrates em Fédon, que estás em companhia dos deuses. Pois aquele nos ensinou, já próximo do fim pela condenação a tomar cicuta, que os homens que se pautaram pela ética, bondade, honradez e respeitos às leis, o fim que se aproximava, mais do que uma pena, era um prêmio para aquele que sabia que, chegado o seu tempo e termo, habitar-se-ia ao lado dos outros sábios que já haviam partido.
Então, e por fim, tendo já transcorrido demasiado tempo, os mais de vinte anos não turvaram a memória e nem a ela impediram, como ao garimpeiro, o encontro do diamante que agora aos senhores ofereço. Apenas e somente, peço licença para levantar a barraca da memória; as frutas à disposição colocada do cliente/leitor podem não tê-lo de todo agradado, mas se delas apenas uma semente ficou, esperançoso em encontrar solo fértil, o tempo aqui passado terá sido válido, pois, como aquele senhor noutra de suas frase disse que o benefício da dúvida gera conhecimento, dividir com vocês essa vivência me fez devedor de tamanha benevolência.
É isso.