HERÓIS

Perante o medo ignoramo-lo e enfrentamo-lo, pela única razão de nada mais podermos fazer.

O que vejo? Imensas coisas, porventura demasiadas. O que sinto? Tanto e por isso lhe vou chamar nada, de maneira a fruir isto ao máximo, porque este é o máximo momento de mim e dos meus.

Sobre o meu capacete e reflectindo-se nele imensas estrelas desafiam-me o olhar entre este céu sem palavras e a terra, a meros segundos dos meus passos, a meros metros da imortalidade. Segundos, metros, nunca pensei que a imortalidade se medisse desta maneira tão redutora e pouco poética... Aos meus ouvidos as vozes dos técnicos e colegas são normais, embora adivinhe nelas uma enorme tenção, um entusiasmo crescente, preso no calculismo de anos pragmáticos onde se preparou esta aventura como apenas um mero acontecimento cientifico, quando na realidade tudo quanto acreditávamos estava em causa, anos silenciosos de silencioso trabalho de sapa, trabalho escondido, antes da era das certezas, do grande momento que eu agora corporizo. Já adivinho os berros, a enorme explosão de alegria e energia, mal dê os primeiros passos e as palavras da confirmação de tudo estar normal. Apressadamente tento arranjar uma frase que seja o corolário desses anos e do momento daqui a pouco presente. A frase de Neil está entalada na garganta...Sim, seria uma óptima homenagem...Não, isto não merece uma repetição, merece o brilho duma originalidade, que me falta desesperadamente! Mas que diabo, porque é que foste tão...certeiro nas palavras. Lembro-me de Gagarine, o primeiro de facto, mas nunca lhe atribuíram nenhuma frase suficientemente épica para o seu feito...Paciência, na altura adequada vou apelar aos deuses da imaginação e rezar para que não me saia nenhum disparate...Recordo-me agora das noticias pouco antes de partir, de me terem endeusado até ao impossível, de me colarem tantos elogios que nas últimas entrevistas me limitei a encolher os ombros e a dizer que qualquer um estaria à altura da tarefa, desde que o quisesse e sonhasse...Houve quem não gostasse, quem me acusasse duma certa arrogância, mas que havia de fazer eu? Era a mais pura e ingénua verdade...Quis, ousei e sonhei, se bem que tive a dose de sorte habitual...E bastam apenas passos para chegar à lenda. Claro que ainda existem alguns perigos, mil e umas hipóteses mais ou menos catastróficas antes do grande momento. Ainda tudo é possível, incluindo a minha morte. Por um momento as vozes calaram-se suspensas, pois é agora que tudo vai acontecer. Silêncio, a única altura em que me ouço verdadeiramente. Silêncio lembro-me claramente da hipótese da morte, da sua proximidade, quase que a sinto, ela pode estar muito bem à minha volta. Todos dizem que o ar é respirável, toda a imensa ciência concentrada nos aparelhos mo indicam, e no entanto é preciso experimentá-lo da maneira mais primitiva: tirar o capacete. Se tal acontecer será...quase agora. Tremo de medo só a pensar se tudo e todos se enganaram, pois quero continuar, quero regressar para os meus e para ti, quero as glórias que me esperam, quero o resto da minha vida, mas antes há que ceder ao inevitável. Posso muito bem negar-me a fazê-lo, posso dar meia-dúzia de passos, cravar a bandeira e pura e simplesmente voltar, a missão terá sido cumprida. Mas depois terão de enviar outro para completar o meu trabalho quase completo, outro que poderá ter as mesmas dúvidas e assim dar origem a uma espécie de telenovela cósmica até aparecer um louco que não hesite em tirar o capacete. Os dedos tremem inquietos. Posso muito bem só tirar o capacete depois dos primeiros passos, mas não, quero chegar a esta terra de verde e castanhos misteriosos (a cor da paisagem e vegetação) como humano, pois não terei atravessado o cosmos para me armar em atado agora! Mas que porra de medo! Os momentos arrastam-se como séculos! Recordo-me das minhas últimas palavras para ti e para toda a gente- ”Tudo irá correr bem...”-As mãos comandadas pelos braços trepam até ao capacete, hesitam uma última vez... Mas... que se f...O clique das molas a cederem é o único e último som que ouço.

Que trevas são estas? Que secreta inquietação me persegue? O que busco eu nas noites sem fim?

Já perdi a conta das madrugadas que me apanharam fora de casa, já perdi conta às noites mal dormidas, porque desde há demasiado tempo deixei de a viver, sobrevivendo nela de forma a viver os outros e de assim continuar o meu mistério, a minha vida.

Cada noite constitui um doloroso exercício de estilo, cada vez que antevejo o meu fato negro, cheio de terror para aqueles que ensinei a temer, cheio de terror para mim, porque o detesto vestir, porque me odeio cada vez que o faço e ao mesmo tempo o amo demasiado para deixar este estranho hábito.

Em tempos, no limiar da cisão recorri a um “mestre da mente”(- pronto, está bem, sem metáforas e sem pudores - psicólogo...) onde lhe falei de toda a minha dor, de todo o meu desejo em a renovar, e de voltar de novo para casa para a paz, assumindo outra personalidade, e de justiceiro negro e enigmático vestir a pele de amado filantropo, papel socialmente correcto e gratificante mas também aborrecido até ao exagero, embora seja outra forma de ajudar as pessoas que tanto amo, e pelas quais vivo os meus dois papeis dramaticamente diferentes. O técnico olhou-me de soslaio, e embora visse nos seus olhos o descrédito, não deixou de ser prestável na ajuda, embora a palavra “mitomano” caísse mal na consulta. Sobre a minha inquietação, respondeu-me com os mesmos enigmas com que vivo, dizendo que a verdadeira paz deveria partir de mim, do equilíbrio entre as minhas duas vidas. Chegou ao ponto de me aconselhar a escolher uma delas e de acabar com a cisão. Insatisfeito deixei a consulta a meio e deixei-o estupefacto com o segredo profissional a garantir-me a continuação da minha duplicidade. Meses mais tarde livrei-o de alguns assaltantes, e, ignorando o seu semi-estado de choque perante um tipo enorme vestido de morcego, perguntei-lhe se entendia por fim o meu drama. Ele não reparou porque a máscara o impediu de ver, mas na altura os meus olhos marejaram, e a minha voz plena de raiva da caçada era demasiado rude para transparecer emoções. Reconheceu-me mas não conseguiu falar, embora tivesse percebido no seu olhar que sim, que ele compreendera, embora isso em nada me ajudasse. No dia seguinte á sua clínica chegou um generoso donativo do famoso filantropo. Foi a minha maneira de lhe mostrar quão dramática era a cisão. No meu atendedor ainda ficarão vários pedidos seus para falar comigo, mas desde aquela noite que ele passou a ser apenas mais um entre a multidão, mais um ser anónimo que um dia me viu, me tentou conhecer e me viu desaparecer.

O mais absurdo é que tenho uma enorme necessidade em ser amado, embora no meu fato negro afaste os afectos e no meu escritório os repele por temer os efeitos que possam ter sobre mim, que possam ter no ostracismo a que me releguei à demasiado tempo. A imprensa já se apercebeu desta distância, explorando-a em inúmeros artigos, que tem a notável pontaria de nunca acertarem. Os entrevistadores que recebo tentam sempre saber qual a razão dum galã rico e belo se rodear apenas de companhias temporárias, afastando-as quando as raras noites que passo com elas me ameaçam transformarem-se em meses, anos em afectos profundos. Respondo no sorriso adorado por todos que cada um é como cada qual, que haverá a altura de assentar, e que até lá estou demasiado ocupado para uma família. Naturalmente que não compreendem o alcance da frase, regressando aos jornais com as minhas dúvidas e a esperança do mais amado á distância dos habitantes da cidade viciosa poder um dia ser totalmente como o resto da população.

Eles não compreendem a luta fratricida em que vivo, a minha guerra civil, o limiar da implosão, o evitar da aproximação aos mil infernos que vivo e sinto demasiado dentro de mim. Ninguém compreende que o meu fato “belo horrendo” é apenas um pouco de luz sobre as trevas que me iluminam desde o momento em que decidi substituir a lei falível dos homens por a dum mito. Ninguém compreende que já vivemos nas trevas, sendo o fato e os métodos algo brutais apenas uma forma de antecipar os novos tempos nos quais já estamos imersos. Claro que aqueles que salvo me estão eternamente gratos, olhando a noite com a segurança de saber que alguém vela por eles, alguém os protege e fará o impossível para que deixem para sempre de ter medo. Mas nem eles compreendem, pois cada vez que se deitam em paz ou passeiam tranquilos nos parques por mim tornados seguros o seu protector arde de inquietação por não poder estar mais próximo deles, por disfarçar o amor em violência contra os seus demónios ou o esconder por detrás de cheques cada vez mais chorudos à medida que o tempo não deixa de passar, à medida que me sinto a morrer pelo ódio terrível que me queima.

Por isso olho com ódio o fato, visto-o com ódio, saiu e imponho a ordem perdida a arder nesse ódio na esperança secreta que um dia ele se extinga, embora não acredite nestas duas frases.

Por ventura será ridículo e algo criticável esconder o meu desespero, a minha dor por detrás duma máscara, mas será menos do que o fazer no fundo duma garrafa? No muro das palavras e dos seus inúmeros artifícios? Tão ridículo como aqueles a quem não consigo chegar, sendo por isso a comparação mais um factor da agonia, da tristeza sem fim, mas cujo único fim é continuar sem parar as noites sem fim, sem a carestia duma madrugada benéfica a adivinhar outros dias onde a rotina poderia ser diferente, mas onde tudo é demasiado igual, onde tudo é (literalmente...) negro.

Chegou a haver uma época feliz, um local dentro e fora de mim onde desconhecia as trevas, até o dia em que me deixei entrar nelas, para nunca mais sair, sendo o pior disto tudo a minha incapacidade em recordar o prazer dessa época, em saber como era viver sem dor. Ao perder o rumo duma certa felicidade, resta-me seguir a tristeza como única e real razão de existir, ou antes, duma certa não existência...

Relegado ao meu beco sem saida, persigo apenas porque não tenho outra saída.

Alguns chamam-me herói, mas sou apenas um fragmento do nada universal, em busca duma centelha de paz, sou um semi-louco à beira da explosão final, com um discurso patético de auto comiseração, um privilegiado demasiado endinheirado e extravagante ao ponto de combater os seus demónios interiores por detrás dum fato sofisticado dando tranquilidade a uns e o inferno a muito (demasiado) poucos para não implodir definitivamente, implorando na sua agonia a tranquilidade que invejo nos outros e que desprezo por a não ter em mim.

Sou apenas um pedaço de papel ou celulóide nas vossas mãos e olhares, existindo apenas para aqueles que nunca saberão separar a minha ficção da vossa realidade,

Se isto dá para o torto...ou tenho uma estátua daqui a vinte anos ou uma pena desse tamanho...

A Salgueiro Maia, o grande Herói esquecido do 25 de Abril de 1974

1;30h

Observo os homens na parada, acordados há pouco e que um pouco atabalhoadamente dominam o sono e a sensação de imprevisto por debaixo da habitual chuva de impropérios dos sargentos que teimam em impor a ordem por mim ordenada. Enquanto isso num canto próximo alguns oficiais de menor patente fumam desalmadamente e discutem os resultados desportivos do dia anterior. Uma vez por outra ainda olham para os homens, trocando sorrisos quando um mais nervoso se estatela na parada, tendo logo no seu encalce o sargento de praxe. Ainda contam uma ou outra piada, sem grande piada sem grande gosto, para de novo voltarem ao futebol e ao futuro campeão que se adivinhará daqui a não muito tempo. No entanto, todos os gestos de toda a gente, apesar de diferentes se orientam e se caracterizam pelo mesmo padrão: o nervosismo, um nervosismo que teima em ser tão denso como uma nuvem de cor desconhecida, mas que nos decidirá o futuro.

Aproximo-me dum monstro de várias toneladas e acaricio-o, não por qualquer transferência de afectos, mas apenas por uma questão de sorte, e porque do desempenho daquelas toneladas demasiada coisa depende. Olho-o longamente e reflicto...A sorte dos homens deveria sempre depender deles, da força das suas convicções, do poder da sua crença e não destes...intermediários metálicos. Por muito razoável e certa que esteja uma razão a sua permanência e sobrevivência dependerá sempre de instrumentos de força.

Atrás de mim a ordem começa por fim a chegar ao ponto ideal, altura em que por fim intervirei. Viro-me e observo os últimos homens a comporem a formatura, enquanto alguns camaradas com a mesma graduação se aproximam. A estes está dispensada a distância de um você e reservado o trato por tu ou ainda mais familiar. No entanto limito-me a sorrir, oferecendo um cigarro, comentando o tempo traiçoeiro e alguns pormenores técnicos do nosso ofício comum. “Primus inter pares”, aparece-me o latim do liceu e a frase pessoal desta operação. Primeiro entre iguais (no latim arranhado por anos de falta de prática...), por que entre tantos fui nomeado, entre tantos servirei de lebre, para a grande corrida até à capital, onde inevitavelmente temos um destino à espera, independentemente do cariz deste.

Está quase tudo pronto, falta o meu pequeno discurso do qual apenas está alinhavada a vontade de que tudo corra pelo melhor, de que para no fim deste salto no escuro tenha ao meu lado todos aqueles que há minha frente me procuram ler a frieza do olhar nervoso.

10;22.

Está quase, mas ainda falta essa enorme distância entre o desejo e a sua concretização.

Chegámos por fim ao coração do nosso objectivo, não sem antes termos apanhado um grande susto: pouco antes de entrarmos na grande cidade, e numa altura em que a coluna estava particularmente vulnerável por nos encontrarmos a descoberto numa auto-estrada, uma secção de três caças surgiu repentinamente a baixa altitude, roçando as nossas cabeças e colando-nos ao solo de susto e medo. O apoio da Força Aérea era, à nossa saída do quartel, titubeante, incerto, pois os “moços do ar”, a elite imaculada do exército nacional por amarem demasiado o céu (dispensando assim os assuntos terrestres) ou apenas por mero comodismo sempre tiveram a tendência de seguir quem lhes garantia os caros Pégasos mecânicos. Por isso o seu aparecimento surgiu no meu imaginário como as guardas avançadas da morte, os arcanjos do mal, a desfazer o ténue sonho ainda recentemente saído da noite que lhe tinha dado origem. Naqueles segundos eternizados para lá do impossível da nossa ansiedade o rugir dos reactores e a perspectiva de um fim demasiado próximo gelou toda a coluna, incluindo os poucos veteranos nos quais eu me incluía. À segunda passagem das naves o instinto dos homens recordou o treino militar, apontando as armas em direcção aos agressores, preparando-se para reagir e retomar os caminhos do sonho. Nessa altura no entanto o sonho pareceu recusar a violência, pois os caças balouçaram suavemente as asas saudando-nos e indicando fazer parte da mesma luta, desaparecendo então no horizonte madrugador, deixando-nos assim definitivamente livre a estrada para o coração da nação.

Nesse primeiro momento único até os céus pareceram estar do nosso lado.

Enquanto a coluna se punha em movimento, trocando gracejos embrutecidos certamente como alivio, da torre do meu carro reflectia...Do medo, o enorme medo que senti desde o inicio, desde que me convidaram para este comando, desde que parti do quartel, até ter chegado àquela estrada. O medo que me comia as palavras, fazendo-me agir como um autómato, a obedecer apenas às ordens e à minha vontade. Um medo avassalador por ter deixado de ser apenas mais um entre vários, para ter sido o tal “Primus inter pares” a encabeçar a vontade daqueles que adivinho tantos, e de estar à altura duma ousadia destas. Medo pelo que posso ir encontrar pela frente, de ir encontrar camaradas meus, companheiros de recruta que o destino colocou num lado que me pode ser mortal, medo pela possível morte daqueles que comando, medo pelas balas ou obuses que me poderão rasgar, medo pela terrível incerteza de saber que de certeza absoluta este dia não ir ser igual ao da amanhã, medo pelo futuro que irei desencadear.

O visualizar dos medos durou até entrarmos nos subúrbios e o meu condutor ter parado bruscamente a viatura para não atropelar um garoto que atravessara a rua atrás duma bola. Assustado pelo rugir do monstro (que lhe “tirou o hipnotismo da bola”) ficou estático à nossa frente; como a minha viatura era a primeira, toda a enorme coluna parou, entre inúmeros impropérios e exclamações de incompreensão. Momentaneamente baralhado contemplei o garoto a alguns metros de mim, contemplei um garoto esfarrapado e descalço, que tinha parado uma coluna que vinha mudar o seu futuro.

Após alguns segundos de igual contemplação despertámos, ele desatando a correr para um lado qualquer, eu a berrar a plenos pulmões pelo avanço, inquieto pelos segundos que devoravam o meu relógio com cada vez maior avidez.

Até que por fim me vejo nas ruas da cidade, me vejo rodeado de gente, pessoas que compreenderam que naquele dia não se trabalhava, que nunca mais naquele dia e para o resto das suas vidas se iria trabalhar, que todos juntos transformáramos um dia igual a tantos outros num dos feriados mais amados que poderíamos desejar, porque esse dia foi construído por nós para o futuro..

A reacção tarda, e quanto mais tarda mais tempo ganhamos, pois à medida que avançamos e que o dia avança o povo vai acordando e vai-se juntando a nós, e até àquele dia nunca ninguém venceu um povo que queria a mudança.

Vejo os meus homens de largos sorrisos, já certos da vitória, a falar com um rigor nada militar, a falar como civis que realmente nunca deixaram nem deixarão de ser.

Vejo repórteres de todos os meios de comunicação a explorar estes novos heróis, vejo os seus microfones e câmaras a absorver cada gesto cada palavra, e pergunto a mim mesmo quantas destas não farão as manchetes dos jornais, abrirão telejornais ou ficarão apenas nos livros da história, com o cariz épico que o tempo e a morte dos seus autores lhe há de dar.

Vejo e observo divertido como é engraçado ver a construção da história, rever naquele povo ululante e saltitante os relatos dos nossos cronistas de outros tempos. Sinto-me honrado por estar no meio do que aquilo se transformou, por ver tanta gente feliz, tanta gente com sorrisos, a cantar, a dançar, ou simplesmente a vaguear na liberdade que tinha acabado de ocupar as ruas.

Por várias vezes vejo e sinto que me fotografam, algo que me intimida, fazendo-me sorrir timidamente e logo de seguida mergulhar para dentro do carro, onde simulo consultar qualquer documento, deixando o protagonismo para outros, e as entrevistas para os meus subalternos.

A cidade está viva, e eu tenho medo, por temer que seja a última vez que o esteja, pelo futuro perverso que posso ter desencadeado.

0;45h

Por fim posso encher os lábios com o sorriso único da vitória.

Não durmo há mais de 48h, não sei o que é um sono tranquilo desde que tudo isto começou, e nem hoje irei dormir como desejava pois há demasiadas coisas em que pensar.

O confronto temido acabou por acontecer, tarde demais para o governo e também para a dezena e meia dos meus homens que tombaram. Esta matança inútil atrasou apenas o meu sorriso, pois os dados estavam lançados há demasiado. Atravessei o Rubicão quando negaram ao povo que tão febrilmente me recebeu a liberdade de falar, pensar e de certa forma sentir, quando lhe quiseram impor um destino, quando em troca do seu silêncio e passividade lhes tiraram os filhos de casa e os colocaram em demasiadas guerras que a política tinha criado, e que para serem resolvidas tinham de o ser com o sangue desses homens. Atravessei o Rubicão quando me obrigaram a deixar de ser passivo, a colocar uma arma aos ombros e um tanque debaixo de mim para resolver duma vez por todas uma situação que deveria ter sido por palavras e não pólvora, atravessei o Rubicão quando perdi a maior parte dos meus medos, quando os ultrapassei para evitar mais medos, para evitar alguns dos medos dos meus filhos netos e seguintes gerações.

Agora que tudo acabou dou comigo perdido num canto do palácio governamental, a ouvir as vozes distantes noutras salas dos meus comandantes, que foram chegando e aparecendo quando tudo era já seguro para as caras das sombras saírem destas e assumirem o controlo da nação.

Nós não o sabemos, não há forma de o sabermos, só daqui a algum tempo teremos a real dimensão destas horas que mudarão anos (e quem sabe...) séculos, mas mudámos, algo em nós se transformou para sempre. Como? Não sei, só o sinto e sinto também que a resposta está algures no futuro que acabámos de criar

As minhas mãos estão calejadas de tantas felicitações, e os ombros moidos pelas pancadinhas vitoriosas, tenho na mão uma caneta e na cabeça as palavras para as mães dos mortos, os verdadeiros heróis desta aventura por não a irem viver na sua plenitude e na realidade nunca a terem chegado a compreender verdadeiramente. Agiram por simpatia (mais por mim do que pela causa ainda difusa na altura da saida do quartel) e morreram por mero acaso, porque se encontravam no local errado que as balas julgarão certo.

Tento pensar no amanhã dos dias seguintes, mas não o quero na realidade. Quero gozar este momento único em que tudo me parece possível, esta “terra do nada” onde o futuro tem a cor da nossa imaginação, onde o impossível só o é se o julgarmos assim, onde a amargura do passado se dilui no enorme capital de esperança desse futuro. Quero acreditar que o maravilhoso deste dia e dos breves que lhe seguirão não será substituído pela desilusão que sucede a todas as grandes esperanças humanas.

Um dia no futuro serei recordado por muitas coisas, a maior parte delas incertas pelo correr do tempo, a incerteza das fontes ou apenas porque a verdade é quase tão volúvel como um gás, dado depender de quem a usa, até será possível que me chamem herói e me usem para personalizar algumas praças ou ruas esquecidas, é bem possível, quando na realidade fui e sou apenas um homem como os milhares por quem passei hoje, que atravessou apenas o seu Rubicão que por acaso coincidia com a linha do destino da história.

Não é necessário que erejam impérios, ou que os destruam, não é imperativo que salvem almas ou vidas, não é fundamental que cometam feitos imensos para não ser esquecidos. Muitas vezes basta serem eles próprios para ganharem a imortalidade da nossa memória.

Já passaram tantos anos e muitos mais se irão passar, no entanto, e apesar de ter partilhado a sua vida num espaço relativamente curto, jamais o esquecerei, jamais esquecerei a sua enorme e notável lição de vida.

Lembro-me em particular do seu olhar e da voz, ambos duma calma transbordante, a calma dos sábios.

Era um homem entre tantos outros, indistinguível numa multidão, um entre milhões que ajudaram a escrever a história do mundo, sem que este fixasse o seu nome ou memória, deixando essa nobre tarefa àqueles que lhe estavam mais próximos.

Ele e os meus pais foram as primeiras vozes que me envolveram quando os medos da infância lá estiveram para a assombrar, afastando-as, protegendo-me até que as minhas defesas estivessem mais seguras ao ponto de depender menos deles. São deles as primeiras histórias lidas nos meus primeiros adormeceres, mas a sua ausência actual faz com que o sinta mais intensamente do que aqueles que ainda estão vivos. Talvez por isso, a sua voz docemente grave e uns olhos onde morava uma infinita bondade, a concentrarem-se ora no livro, ora em mim, vem do fundos dos tempos para me recordar que ele ainda por aqui está, porque ainda o recordo com esta intensidade. Foram dele também as primeiras caminhadas pelos pinhais, em tardes imensas de companheirismo, mas que a memória sovina apenas me deixou pequenos pedaços....Enormes e deliciosos momentos, entalados nas visitas de fim de semana, ou apenas nas poucas férias passadas por mim na sua aldeia natal. Esses momentos na altura não me pareciam propriamente nada de especial, porque na altura a minha idade e imaturidade não mo permitiam, e se hoje o sinto é porque a memória teve o dom de os preservar e fazer amar.

Lembro-me de episódios esparsos e da sua reacção, lembro-me da sua rotina no final dum dia de amanho duro dos campos, da sua enorme paz interior que nunca mais vi em qualquer ser com aquela profundidade, a profundidade dos sábios genuínos embora tenha a sorte de ter conhecido um punhado apreciável de gente notável antes e depois da sua morte.

Lembro-me das suas maiores lições, risíveis à maior parte que me ouça ou me leia, mas duma importância quase sacrossanta para mim.

A primeira (que me lembre, pois há certamente mais, apagadas do consciente mas que guiam algum do meu subconsciente) aparece-me envolta no nevoeiro da memória, mas ainda suficientemente clara para a respeitar e continuar a seguir: numa tarde duma primavera perdida na minha infância acompanhei o avô numa visita às suas terras. Na ocasião decidirá roçar o mato dum dos seus pinhais de maneira a diminuir a voracidade do fogo se este ( ou os homens que o instigavam...)tivesse a má ideia de por lá passear. Lembro-me que aquele homem de sessenta e tal anos se afadigava a alguns metros de mim contra o mato e me deixara momentaneamente entregue ao ócio e às ideias disparatadas que por vezes atacam quem se dedica a este tipo de actividade...Os minutos vazios transformaram-se em delírio quando os meus olhos encontraram um serrote na caixa de ferramentas, e se bem o vi, pior o pensei pois num espaço de segundos me encontrava a dilacerar o pinheiro mais próximo, até que uma mão pesada e uma voz dura me devolveram ao mundo; de rosto quente e lágrimas a quererem vir cá para fora, olhei para a origem da dor e vi-o a ele, pela primeira vez com uma expressão dura e algo sofrida a olhar para mim, enquanto segurava o utensílio que deixara cair. –“Cada uma destas árvores representa anos de trabalho, anos de sofrimento para as fazer crescer”, disse-me num tom duro e sem oferecer réplicas. Na altura calei-me pelo enorme respeito que tinha por ele, sem realmente compreender os ensinamentos da sua palavra, mas senti que a bofetada entretanto esfriada lhe custara mais a ele do que a mim. No caminho não falámos no assunto, aliás, nunca mais falámos dele, e eu nunca mais cortei uma árvore ou agredi um ser vivo sem razão.

Anos mais tarde soube que, muito tempo antes de nascer, o avô andara por terras francesas, onde ajudou a reconstruir o país das feridas da guerra a que Portugal escapara por ser não beligerante. Passara esse tempo com uma enxada no amanho das poucas terras familiares ao invés de ter pegado numa arma e ceifado vidas que amava tanto. No entanto, quando a paz beijou o continente a miséria que nos atacou obrigou-o a partir durante vários anos para alimentar a família que entretanto nascera da união com a minha avó. Os anos de ausência e saudade permitiram que os meus não passassem fome e até que comprassem mais algumas terras. Terras onde se incluía aquele pinhal, terras de suor sangue e lágrimas da enorme saudade daquele homem, cujo maior castigo era afastarem-no de quem amava, e que por eles se sujeitara a essa provação.

Também foi ele que me ensinou a amar as palavras, uma das suas lições mais queridas pela gama quase infinita de perspectivas que me abriu. Com a primária acabada e lançado na vida do trabalho porque esta não lhe permitira seguir os livros, ocupava as poucas horas livres a ler, a ler qualquer coisa, desde que lhe desse algo, lhe ensinasse algo, e lhe permitisse ensinar. Era e foi pois um autodidacta, mas também criador, pois dos livros tirava ideias que alimentavam as suas ideias, sendo um dos resultados desta feliz união pequenas máquinas criadas por si para auxiliar os seus trabalhos. Eram máquinas simples, onde só ocasionalmente morava a electricidade, mas aparelhos notáveis por essa simplicidade, pela eficácia e por terem saído da mente deste homem de permanente e doce sorriso. Sabendo que o meu amor pela mecânica era apenas um desejo seu, e adivinhando-me o carinho pelos livros por ele partilhado, deixou as invenções para si ou para outro neto ensinando-me a arte de amar esses livros, ensinou-me a perder o inominável acto de os dilacerar com desenhos, ensinou-me que as palavras sem desenhos são igualmente belas, por mil e umas razões mas também porque nos permitem imaginar livremente o que descrevem, sem a barreira (ou prisão...) pictórica já definida. Seria um milagre se tivesse parado totalmente com a bonecada, mas o que é certo é que diminui a tentação e quando lhe dava azo fazia-o a lápis, porque este é perene e porque deixa o negro da tinta das palavras prevalecer. Ensinou-me também a procurá-las. Foi dele o meu primeiro dicionário e uma técnica oral infalível que ainda hoje aplico e que ensino a quem posso. Ao invés de me revelar o significado das palavras quando a dúvida me assaltava, obrigava-me a ir “à origem à raiz das palavras” e delas extrair o seu mistério. Ainda hoje não sei se era a sua alma camponesa em acção no reino das palavras ou o poeta que nunca chegou a ser no papel que o fazia olhar as coisas desta forma...que penso única, não sei nem nunca quererei saber pois isso faz parte duma parte dele que nunca cheguei a conhecer, mas onde adivinhava tesouros imensos que a sua mortalidade me impediu de saber. Procuro a ignorância de maneira a não lamentar ainda mais a sua ausência e o imenso que perdi quando a lei da vida no-lo roubou.

Apesar de ser um homem de imensos afectos, era reservado nas palavras, procurando transmitir os estados de espírito no olhar, e por isso jamais esquecerei o momento em que o visitei depois de ter publicado o meu primeiro texto, nos alvores da adolescência. Apesar da escrita ser criticável, o facto de ter superado a barreira da publicação encheu-o de alegria, que transmitiu num contido e imenso sorriso sem palavras, ao qual não faltava nada, no qual as palavras estariam a mais.

Anos mais tarde escrevi vários livros, e continuo a escrever, mas infelizmente só posso adivinhar a sua reacção, pois a sua estadia entre nós foi cruelmente abreviada poucos anos depois da primeira publicação.

E até na morte foi notável -Não descreverei os pormenores, pois a intimidade deve prevalecer até num fim, refiro apenas que resistiu sem se queixar, sem uma palavra de dor a uma agonia que durou anos, sem um queixume apesar de lhe lermos no rosto e nos sorrisos cada vez mais escassos um sofrimento raro, por vermos na sua postura cada vez mais curvada um fim que ninguém assumia que ninguém queria assumir e de que ninguém falou, até que o corpo se rendeu por fim num dia de verão, um dos verões mais quentes da minha vida, onde o suor se confundiu com as lágrimas que detestava deitar, mas que naquele dia foram plenamente justificadas.

Durante o resto da minha vida e até ao momento presente procurei seguir o seu exemplo, não o imitando, porque ninguém é imitável, porque se o fosse deixávamos de seguir as nossas próprias vidas, limitando-nos a transformá-las no prolongamento daquelas que admirámos, procurei dar aos outros aquilo que dele recebi, procurando honrar com isso o seu enorme e anónimo legado humano. Sei que estou aquém. Sei que sempre o estarei, mas a mera tentativa sei que faz de mim um homem melhor.

Noutros tempos, noutras vidas o avô poderia ter deixado o seu nome no futuro dos outros, com outras oportunidades sociais e escolares o seu espírito inventivo poderia ter gerado maravilhas insuspeitas, ou escrito obras duma beleza que nunca viremos a saborear, ficou a hipótese na cabeça de quem o amou, e ele ficou apenas na memória dos que o conheceram e daqueles que gerámos, fazendo-os olhar as fotografias daquele homem já distante pelo tempo, mas de histórias sempre presentes, dum afecto imortal, que me faz recordá-lo com uma saudade que jamais esmorecerá, que me faz pronunciar o seu nome adicionando com os lábios sem som a palavra herói o meu herói pessoal, o maior dos meus mestres, o meu avô.

“ O Irmão Roger encontra-se finalmente face a face com o Invisível”

Taizé Agosto de 2005

Fundador da Comunidade de Taizé situada a 400 km de Paris, o Irmão Roger teve uma vida dura e uma morte tremendamente injusta.

Roger salvou inúmeros judeus da garra dos Nazis entre 1940 e 1943, altura em que foi obrigado a fugir para a sua Suíça natal para não cair nas mãos dos Nazis, que enraivecidos pela fuga destruíram a sua casa situada na aldeia de Taizé.

Roger foi o responsável por inúmeras conversões ao fundar a Comunidade e lhe emprestar a heterodoxia que faltava e ainda falta à Igreja Católica.

Todos os anos milhares de jovens passam vários dias na Comunidade, jovens que faltam às missas nos seus países mas nunca em Taizé.

Fui a Taizé agnóstico em 2004, 2005 e 2006 e o seu espírito tornou-me num crente em 2007.

Eu estava ao lado da Igreja quando o Irmão foi lá assassinado por uma fanática, e testemunhei as horas e os dias que se seguiram ao terrível acontecimento.

Testemunhei que a assassina esteve várias horas detida num carro da polícia, enquanto centenas de pessoas olhavam para ela, sem raiva, sem medo, com uma enorme paz, apesar da assassina ter eliminado o nosso Mestre e estar ali tão perto de uma forma de justiça... Testemunhei a calma que invadiu a Comunidade nos dias seguintes, uma calma que não consigo explicar, transcendente, apesar de eu também estar calmo.

Não conheci pessoalmente o Irmão Roger, mas ele é sem dúvida um dos meus Mestres, um dos meus Heróis, e assim será até que por fim eu, tal como ele, me encontre finalmente face a face com o Invisível.

Por isso e por muito mais motivos é que eu, que até nem ligo muito à religião, irei sempre que possa a Taizé, nas palavras de uma amiga minha “o nosso pedacinho de céu na Terra”.

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 25/09/2009
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