MARES

“Este mar enorme não havia forma de ter fim, por muito que os meus olhos viajassem no seu horizonte e procurassem a finitude dele, algo que não fosse apenas água”.

Na proa da embarcação, semi-apoiado de bruços, olhava perdido a imensidão que me desafiava a imaginação, os sentidos e a vontade. Observava as ondas revoltadas a quebrarem-se raivosamente contra a quilha do intruso, assumindo a sua derrota temporária na espuma que denunciava o seu quebrar e a vitória humana. De ambos os lados golfinhos pulavam divertidos, acompanhando o barco e vencendo-o quando a sua vontade indeterminada os fazia acelerar alguns nós humanos, deixando-nos outra vez sós. Pelo menos Neptuno não se estava a importar demasiado com a nossa presença, já que além de mandar alguns dos seus mais belos filhos fazerem-nos companhia, mantinha os mares e os ventos suficientemente calmos ao ponto da monotonia do nosso indeterminado périplo ser o nosso maior inimigo. Nem uma aragem, nem uma nuvem, uma ameaça duma mudança súbita de tempo que nos fizesse sair do torpor instalado. Nada.

Apenas nós e a insustentável saudade de quem amávamos, quem não víamos há demasiado tempo, e que não sabíamos durante quanto mais os iríamos ver.

Nada, apenas nós, insustentavelmente nós.

A mulher madura, mas ainda demasiado nova para lhe adivinharem a velhice prometida, olhava confusa o horizonte líquido há sua frente.

Descalça, percorria vários quilómetros no pequeno cais de pedra, enquanto as suas mãos percorriam o terço das aflições, apelando à divindade oficial e às outras (as da água, não assumidas exteriormente) o regresso são da outra parte de si que tinha partido há demasiado tempo, e que não havia maneira de voltar, partira num barco claro que temia agora negro. Triste, acariciava também a sua barriga com forma de meia lua, a recordação mais querida, mas também mais dolorosa da sua metade que faltava. Já não bastava apenas a sua tristeza, e teria que suportar a outra tristeza que iria reclamar mais tarde a ausência, os afectos e a saudades que ela sentia bem demais naqueles momentos. À medida que as horas passavam, outras mulheres apareciam, olhavam o mar com a mesma intensidade, mas depois voltavam resignadas ao calor das casas e ao luto escondido das famílias, mas não sem antes tentarem levar com elas a jovem, que recusava obstinadamente o convite, aceitando apenas algumas mantas que a protegessem do frio da noite que se aproximava. Só, envolta nas trevas frias, tão dura como o cais, mas mais ágil que este, não parava de andar, não parava de acreditar, embora fosse a única naquela noite a sonhar que um certo destino poderia estar enganado, a acreditar que parte da sua felicidade não tinha morrido algures na imensidão à sua frente que lhe desafiava a vontade e as lágrimas que só queria deixar correr quando ele voltasse.

E enquanto esperava lembrava-se de um velho fado bem português e que as palavras que não queria premonitórias não saíam da sua cabeça, não saiam de si

“De manhã, que medo, que me achasses feia!

Acordei, tremendo, deitada n'areia

Mas logo os teus olhos disseram que não,

E o sol penetrou no meu coração.

Vi depois, numa rocha, uma cruz,

E o teu barco negro dançava na luz

Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas

Dizem as velhas da praia, que não voltas:

São loucas! São loucas!

Eu sei, meu amor,

Que nem chegaste a partir,

Pois tudo, em meu redor,

Me diz qu'estás sempre comigo.

No vento que lança areia nos vidros;

Na água que canta, no fogo mortiço;

No calor do leito, nos bancos vazios;

Dentro do meu peito, estás sempre comigo”

A fera indomável teima em esmagar-se inutilmente contra a torre dentro da qual estou fechado. Talvez um dia a vença, talvez os restos desta construção se confundam com outras pedras do fundo do mar, isso irá acontecer talvez um dia, mas não hoje, não nesta noite, a minha última noite no meio dele. Tentar descrever a imensidão de sons que percorrem e que ecoam na torre vazia é tão difícil como dizer aquilo que sinto, porque se me sinto distantes dos meus neste ermo molhado, também me sinto aqui perfeitamente integrado, neste nicho de terra no meio dum mar que me parece tão grande como o universo, sinto que faço tanto parte deste mar como os peixes, algas e corais porque, ao fim ao cabo não fazemos ambos parte da mesma natureza? E é nestas ocasiões, quando a noite e a tempestade só deixam ver o mar, apagando totalmente o céu que sinto ser este o único cosmos do homem, por muito grande que este seja, por muito biliões de nós que um dia lá moraremos. Apesar de ser mais inóspito, as manifestações de raiva do universo são quase sempre silenciosas, ao contrário dos setes mares, quase nunca silenciosos, sempre, para sempre a pulsar de energia, plenos de vida, que exibem em qualquer onda, que se mostram mal um bocado de vento lambe as águas, ou apenas quando alguém passeia pelas areias. Pelo contrário, para achar vida no espaço será necessário vasculhá-lo com aparelhagens demasiado caras ao comum dos mortais, quando ao comum dos mortais basta atirar à água até o pior dos iscos, para de imediato uma centelha de vida aparecer. Por isso, apesar da ausência de vozes à minha volta e da permanência da tempestade, sei que não estou só, sei que estou rodeado por vida. Mas por pouco tempo: a mesma tecnologia que pôs o homem na lua e que o vai pôr para mais longe daqui, nas antípodas das profundidades molhadas, vai colocar nesta torre uma máquina qualquer que manterá a luz acesa sem ter que ser alimentada, sem necessidade do sono possível, sem ter de ser substituída, visitada...A luz será seguramente eterna, mas ao mar roubarão mais uma vez o homem, ao mar tirarão uma das criaturas que o ama mais intensamente. A par dos GPS’s, dos radares, de imensas sondas e de barcos cada vez mais potentes, esta é mais uma tentativa do duvidoso homem para dominar os mares, dominar sem compreender, embora compreenda bem demais que os mares jamais serão conquistados, admitindo, quanto muito um domínio temporário.

Ficarei, depois de sair, a vigiar uma praia qualquer, finalmente com os meus, mas demasiado longe das águas e de todos os seus esplendores.

São horas de dar mais uma olhadela à luz, porventura a última. Parece que vai passar uma esquadra qualquer a caminho duma guerra qualquer, no fim da qual Neptuno terá mais meia-dúzia de destroços que darão origem a mais corais, mais vida.

Ilha: uma imensidão de mar com um bocado de areia no meio.

O sol queima intensamente a minha pele, obrigando-me a procurar a salvação temporária nas palmeiras, mas nem debaixo delas o alívio é total. Duma caixa retiro uma lata dum refrigerante qualquer, morna, quase quente, cuja data de validade me recuso a ver, com receio que a leitura desta me iniba de matar a sede. Abro também uma outra lata, mas de comida, de gosto discutível, mas comida, preciosa comida. Saciado olho o horizonte na vã esperança de qualquer sinal humano que possa terminar o meu cativeiro, mas nada, o que me dá uma insuspeita vontade de filosofar sobre a perenidade da vida humana, sobre a excessiva fragilidade dela perante qualquer adversidade. Estou vivo, o que é óptimo, mas vivo graças ao facto de ter caído nesta ilhota num avião de carga que se avariou, cujos mantimentos permitem um relativo bem estar, até acabarem...Durante algum tempo ainda vivi com o piloto, mas este, exasperado pela avaria do rádio, e a impossibilidade de nos contactarem, improvisou no barco insuflável uma vela, encheu-o o espaço por mim recusado com mantimentos e partiu, em direcção ao desconhecido, na esperança (não sei se duvidosa) de encontrar a salvação. Menos aventureiro e fiando-me na quimera dos abastecimentos, preferi ser descoberto a procurar que me descobrissem. Ao menos aqui estaria livre de tempestades, tubarões e dos perigos imensos que poderiam vir desse mar demasiado grande que me fez estar aqui encafuado com um enorme medo do desconhecido, ou como eu disse ao piloto “temporariamente salvo...”O que é certo é que ele nunca mais deu notícias, nem veio gente à procura das minhas, apesar de acender quase religiosamente fogueiras nos pontos mais altos desta terra, perdida de tudo e de todos, menos de quem tem o azar de aqui parar. Sei que quando a comida acabar vou pelo mesmo caminho, pois nem há coqueiros em número suficiente para me alimentar, nem tenho jeito nem a mínima habilidade para caçar gaivotas ou os pequenos lagartos que são a minha única companhia. Mais do que nunca acho piada a Robinson Crusue e àqueles heróis polivalentes que sobrevivem quase do nada em situações iguais às minhas. Serei talvez o caso clássico dum ser que não se soube adaptar ao ambiente, e que por isso ficou na história evolutiva como um resto que possibilitou a sobrevivência dos mais aptos, ou mais fortes se quiserem. Mas, bem vistas as coisas, no meu mundo a abarrotar de prosperidade só me tinha salvo graças ao facto dos desperdícios dessa prosperidade alimentarem quem nada faz por ela...Escolaridade paga pelos pais, emprego arranjado por conhecidos e eis-me que vivia até com relativo conforto sem nada ter feito para isso, nem me preocupar com o assunto...Até que essa falta de jeito chocou com esta ilha, e me expôs como nunca. Os últimos momentos serão dolorosos, sem dúvida, mas como nunca me habituei a pensar no tempo para além de algumas semanas, isso é algo que me preocupa tanto como saber o resultado dum jogo de futebol. Abro mais uma lata, penso no quase nada que deixei para trás e não penso que devia poupar os abastecimentos. Enquanto houver gasta-se, a lógica do mundo industrial, a minha, que me recuso a abandonar, mesmo em pleno e terrível mundo natural. No entanto, e isso é que estranho para um indivíduo como eu, que nunca se ligou a nada, sinto-me só, com saudades da futilidade que me rodeava, e ao qual nunca dei verdadeira importância. Até do piloto rezingão e mal disposto, que só sabia falar de aviões, motores e das comissões de combate duma guerra qualquer em que participou, sinto falta.

Ilha: uma imensidão de mar com um bocado de areia no meio.

Mas que raio de ideia a minha!

Vituperei quando a maquinaria avariou e me deixou por fim só. Enfiar na cabeça que cabeça que aquele record havia de ser meu e de seguida enfiar-me numa espécie de casca de noz à espera que a trilogia de ventos, tecnologia e sorte me empurrassem de encontro ao destino almejado. Claro que antes foi preciso convencer os investidores do costume e de seguida fazer o esforço de ter o barco totalmente coberto pelos nomes daqueles que me possibilitarão este devaneio semi-suicida, e de com eles navegar até à fama. Apenas uma parte ínfima do barco teria uma parte genuinamente minha, ou antes, tua, pois a minha única propriedade era a placa com o nome do barco, o teu nome...Homenagem vã porque nunca to cheguei a dizer, porque farto de mim e de ti me enfiei nesta coisa e imaginei que os sete mares eram apenas o Rio Letiz onde procurei o teu esquecimento.

E pronto, disse-o...Em primeira mão, aos peixes...Mais do que a sede da fama, a necessidade dum protagonismo, o amor da aventura, foi o teu amor (ou melhor a ausência dele...) que me levou a este deserto molhado, deserto pela tua distância. Para o comum dos mortais bastava trocar de emprego, de cidade e de número de telemóvel para a distância me dar a paz e tranquilidade que necessitava. Mas eu nunca me considerara normal, nem sequer na minha intimidade, e por isso tinha de afastar esta dor num local onde desse nas vistas, do género “carpir as mágoas sozinho mas onde toda a gente possa ver e perguntar o que estava a passar pela cabeça do tolinho...”. Sob um outro ponto de vista, esta fuga poderia ser interpretada por arrojo, heroísmo, um acto de bravura só ao alcance de poucos...Em suma, todos sairiam a ganhar com esta “jogada”. Ou pelo menos assim o pensava e sentia, até descobrir em plenos mares a falta demente que me fazes, que a dor não se esvazia com a distância, pelo contrário, enchendo-se até ao impossível, na impossibilidade de te tocar e ver, pois até a suprema burrice de não ter trazido una fotografia tua cometi...Mas por outro lado, a perspectiva de avistar o teu rosto no cais que me acolherá eufórico me atemoriza, pois sei que a tua presença será de cortesia, de amiga, que não será para me levar ao nosso todo já desfeito, que quando muito me levará até a um café, onde trocaremos sorrisos e pequenas notícias, para depois seguir cada um para o seu lado, tu para os braços do qualquer que escolhes-te, e eu de novo para o mar, quando os livros de história já souberem o meu nome e eu querer repetir a história já que não posso repetir ou retomar a nossa história.

Um vento suave aflora as ondas, o sol lambe-me suavemente o rosto, e eu não faço a mínima ideia onde estou.

Por fim paz, por fim tranquilidade, por fim sou feliz.

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 24/09/2009
Código do texto: T1828861
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