SOLIDÕES

É o meu monstro perpétuo, a minha sombra sólida, o meu maior pecado, o mais assustador de todos os pesadelos, a mais confrangedora realidade

Nunca pensei que fosse ou sentisse assim, nunca o pensei, porque nunca me imaginei assim. O mais estúpido é estar literalmente perdido no meio de nada, porque, para onde quer que me mova por onde quer que olhe, nada toco, quase nada vejo, e mais absurdo ainda é estar ao mesmo tempo no meio de tudo. Sinto e sei que o meu corpo está a pairar descontroladamente, aparentemente parado, mas na realidade a alguns milhares de quilómetros, mas que nada me fazem, porque nada sinto, a não ser a ideia da morte lógica que irá colocar um ponto final no movimento na minha cabeça, porque muito depois de fechar os olhos continuarei a errar ao acaso, até que por acaso o meu corpo sem significado (isto é, sem vida, sem alma...) pare num algures que desconheço, e para o qual me estou logicamente a borrifar. Mas este desprezo pelo destino do invólucro não é partilhado pelos meus, que apesar de não fazerem a mínima ideia onde estou, sabem-me praticamente morto, e querem-me junto deles para as lágrimas terem um objecto de tristeza, para que não olhem para todos os lados do céu quando me quiserem recordar, para que repouse num cemitério, onde a intimidade das preces possa mergulhar na terra e não se perder nesse céu. Sinto tanta coisa, apesar de me recusar a tal! Sinto a obvia falta daqueles que nunca mais verei, uma falta incontrolável, mas só controlável pela incapacidade de os poder tocar ou pelo menos falar novamente. A falta é tanta que as palavras faltam para a transmitir. Mas sinto também um estranho amor pelo meu túmulo, amor que não para de aumentar apesar de saber que a concretização máxima do meu amor é a morte. Olho para as estrelas incontáveis que me rodeiam, e por instantes surge-me na mente uma imagem tão absurda como bela: as estrelas são um mar, onde a diferente distância entre elas as faz parecer ondas, ondas imensas, tão grandes como a maior das imaginações, onde navego eu, invisível pela grandiosidade do cenário e pela brevidade da minha vida. Sou um náufrago quase à beira da loucura que perdi da memória a altura em que vi pela última vez rostos humanos, me despedi deles com uma “até já”, que deveria ser “até sempre”. Sou um náufrago que para não morrer queimado sai apressadamente do veículo em chamas, esquecendo-me que a morte evitada também estava no exterior, com a pequena diferença de se ir prolongar dolorosamente sem dor exterior, mas com a insustentável agonia que possam imaginar. Sou um “Cosmonaufrago” que nem se pode dar ao luxo de berrar inutilmente pois o capacete mo impedir, mas mesmo que não me servisse de barreira, o som perder-se-ia no vácuo, dado ninguém me ir ouvir.

Haverá maior solidão do que esta?

Estou rodeado de gigantes, e por absurdo que pareça, sinto-me como um deles mas diferente. Eles olham-me indiferente, levantam-me até uma altura impossível, para depois me deixar cair violenta, mas ao mesmo tempo suavemente, num movimento cíclico que me coloca o coração na boca e à beira do desespero, um desespero mais que presente nesta imensidão salgada, e que só uma certa inconsciência minha não o faz sentir mais. Desde há algumas horas deixei de escutar os queixumes do meu corpo, ignorei-os, não estoicamente, mas apenas por uma questão de egoísmo, de querer manter colado o espírito ao corpo e de assim o fazer fruir a vida que furtivamente me diz para me render, e digo furtivamente pois ela di-lo indirectamente, a través de pequemos sinais, através da sua voz muda - Se escutasse esse frio que se entranha cada vez mais na carne, desse ouvidos aos imensos arrepios que obrigam os meus dentes a baterem dementemente uns nos outros, aos músculos que me pedem, imploram pelo descanso, já teria desistido à muito tempo, já me teria deixado levar pelo canto dos gigantes e mergulhado nos seus imensos braços sem forma para sempre. Mas não, desde sempre fui apologista da alma ser o maior tesouro dum ser, e por isso a quero manter a todo o custo, nem que esse custo seja uma dor física indizível. No entanto para tudo há um reverso da medalha, e a minha é o vazio dessa alma, que imitando o corpo, também se queixa à sua maneira...apresentando-me apenas uma exigência, esta revela-se de impossível resolução, apesar de aparentemente simples - Ela quer a companhia de outros corpos, com outras almas, ele pede-me cruzamento de palavras e olhares, pede-me o calor de outros seres, apenas o impossível deste simples. Perante o meu silêncio ela retalia insistentemente, bombardeando-me com imagens daqueles que amo, ou que passei a estimar desde que me vi envolto entre os gigantes por saber que nunca mais os verei.

Ciente da minha impotência olho os céus e espero que deles venha uma resposta, não por qualquer tipo de crença num entidade superior, mas apenas porque os desejo ver cruzados por qualquer ave de metal, cheia de seres como eu que me poderão tirar à vertigem dos gigantes e de assim satisfazer as minhas duas metades. Mas não, os céus fecharam-se, condensaram-se, fechando-se sobre os gigantes e permitindo que estes reinassem impunemente e assim me condenassem.

Porque continuo, porque me recuso a ceder, para além do motivo de querer manter a alma? Porque sou o único a resistir aos gigantes, sou o derradeiro elemento que os impede de mandar impunemente na imensidão que a minha vista alcança, uma vista que deseja a terra onde moram e desesperam os meus semelhantes, e que começo a duvidar francamente que exista talvez por nunca mais a ir ver.

Por um instante esses rostos ocupam o espaço dos gigantes e sorriem-me, mas também choram. Sorrisos pela minha chegada, lágrimas porque sabem que essa chegada é tão difícil como a evaporação destas águas.

Um bocado desse infindável caldo salgado invade-me a boca e sabe-me estranhamente bem. Provavelmente é um sinal de que em breve irei fazer totalmente parte dele. Por um instante sinto que amo os meus mais do que alguma vez amei, talvez pela impossibilidade de os voltar a amar como o corpo e a alma queriam, ou talvez porque a distância e o fim sejam os condimentos ideais e dramáticos para esse amar pleno.

Estou rodeado de gigantes, e por absurdo que pareça, sinto-me como um deles mas diferente.

Vi-te um dia pelo espelho retrovisor durante algumas horas e senti em ti um vácuo. Seria solidão ou apenas cansaço?

O trânsito comia-nos a paciência e alimentava o desgaste das habituais horas de trabalho, transformando o mais calmo dos condutores num perigoso ser, a quem bastava apenas uma buzinadela para dele tirar o monstro que habita dentro de nós e que só espera as más alturas para se revelar. Bem, a coisa não seria assim tão literal, mas o que interessa reter é que naqueles momentos (horas!) de tédio sufocante estamos sensíveis a diferentes estímulos e foi um desses estímulos que me levou até ti: depois de ter ouvido todas as cassetes, noticiários e programas musicais, dei comigo na demanda doutras distracções, e foi assim que encontrei o teu olhar no espelho retrovisor. Por algum acaso ficas-te atrás de mim durante demasiados quilómetros, e se digo demasiados é que talvez o tenham sido ao ponto de querer ler esse olhar triste e profundo e dele extrair possíveis sentires que (onde é que eu já vi isto...) provavelmente só existiriam na minha cabeça.

Eras ainda jovem e tão bela como outras mulheres com as quais me cruzo todos os dias, mas o teu olhar...enquanto as filas teimavam na imobilização e não te exigiam a atenção de condutora, vagueava por um algures que desconheço, mas os suficiente para me obrigar a olhar para ele, pois não deixavas de olhar para esse abstracto com uma ausência que talvez fosse tristeza, tocante, melancólica, salgo lúgubre...pareceu-me a tristeza que o nosso fado possui, uma tristeza apaixonante e por isso tocante. Nesse olhar senti a solidão de quem ambiciona um mínimo, mas a quem esse mínimo é negado, ou a tristeza pura e simples das almas solitárias, de quem ao chegar a casa vai encontrar apenas a companhia efusiva de um gato e a janela duma televisão que ao invés de te atirar ao mundo nos seus milhentos canais apenas te mostra como estás demasiado longe dele...Ou então, ou então tinhas à tua espera em casa um marido estafado e um ou alguns filhos, que desesperavas por não ver de imediato, de lhes dares apenas o teu sempre tão curto tempo, de os amar nessa brevidade, de esperar que a cara metade se satisfizesse pelos afectos possíveis e que a miudagem crescesse saudável e chegasse preparada às tentações da adolescência onde demasiados se perderam. Estarias no meu espelho retrovisor a fazer contas a essa vida, remoendo os descontos do ordenado e esperar que ele chegasse para o mínimo das necessidades e prazeres dos teus e se possível para algum pequeno luxo teu. O olhar e os cigarros poderiam afinal ser pois a conclusão de que as contas estariam tremidas...Ou então tinhas de facto este todo familiar mas fazias as contas se os amavas de facto, se valeu a pena ter casado com ele num tempo em que o amor parecia eterno, ou apenas um substituto para a solidão adivinhada nos anos que ai viriam inevitáveis, e essas contas não deixavam de te gastar o espírito e de queimar a pouca paciência que te restava, cada vez mais curta, pois racionalizavas cada afecto, cada gesto que tinhas para com eles, reflectindo se a cada contacto não poderia dar mais de ti, e amargurando-te com esta cisão. Pensavas também nos possíveis destinos alternativos à tua vida actual (e possivelmente) para sempre; onde e com quem poderias estar, mas sobretudo se estarias mais feliz...Destinos alternativos...o ligeiro esgar que te adivinhei no rosto (ou seria uma ilusão causada por um certo embaciamento do vidro?) poderia bem ser um esgar de tristeza perante a hipótese...Só colocada no único momento verdadeiramente teu, o único momento de solidão em que te podias sentir, ali, no meio de milhares de outras solidões dos milhares de condutores. Ou talvez fosse o ritmo dos cigarros que fumavas que me levou a ver na frequência deles o teu vazio interior que querias preencher com a avidez de quem ama demasiado uma vida que não te ama por ai além. Ou se calhar foi esta minha solidão momentânea a criar tudo isto, e tudo isto não passar só de um nada existente na minha cabeça.

Vi-te um dia pelo espelho retrovisor durante algumas horas e senti em ti um vácuo. Seria solidão ou apenas cansaço?

É à noite em que a besta aparece mais intensa, mais feroz, talvez por isso tenha abdicado do sono.

Desde há demasiado tempo que espero todos os dias pelo milagre da luminosidade eterna, que olho apreensivamente quando o sol se deixa dominar e se recolhe por breves mas eternas horas.

Temo a escuridão mais do que tudo na vida, e embora já tenha racionalizado isso até ao absurdo das introspecções não consigo deixar de sentir esse...estado. O mais absurdo reside no facto de supostamente a escuridão ser minha aliada, pois com ela deixo de ver os espaços físicos onde já não estás, e assim “supostamente” não dever sentir a tua ausência, mas os mistérios da mente são insondáveis, se bem que por vezes lógicos, e a lógica (aliada à inevitável verdade...) é que me fazes falta ao corpo e à alma, sendo nesta última que tudo se complica até ao insustentável, porque jamais conseguirei sustentar sozinho as saudades vorazes do teu todo que partiu um dia, sem deixar nada, sem um bilhete de despedida, nem uma morada, apenas uma casa e um mundo que partilháramos em tempos, em suma deixas-te apenas o lugar comum dum vazio

Talvez abjure as trevas porque no seu mistério tento adivinhar o teu regresso, tento querer nas sombras ou nos rostos que delas irão sair o teu, tente preencher o vazio da escuridão com a tua silhueta que traria cativa a alma, esse “demasiado alento”, essa espécie de alimento, sem o qual jamais voltarei a ter o equilíbrio do comum dos mortais. Durante o dia, a segurança da visão é o meu maior garante da ausência de ansiedades, pois se chegares alguma vez ver-te-ei muito antes de pensar que podes vir, ao contrário da noite, aliada por excelência das tais ansiedades, das surpresas, à noite virias de surpresa, e eu já não tenho a dose de animo que me faça suportar certo tipo de novidades imprevistas, pois, por muito absurdo que pareça não queria que me surpreendesses, queria apenas que aparecesses...

O tempo foi passando, e a ausência de sono foi-me consumindo cada vez mais, transformando-me numa espécie de zombie, cuja degenerescência vejo nos olhos de quem me rodeia, olhos que não me interrogam pois sabem que o meu mistério é tão obvio que não precisa de explicação.

E quanto tempo terá passado? Na alma as distâncias e outros elementos mensuráveis são mentirosos, pois ela tem esse dom tortuoso de tudo adaptar à sua vontade, e a vontade é que tivesses partido à pouco tempo para assim sentir menos a ausência.

Francamente não sei, só sei que estou farto da minha “doença do sono”, estou farto de te esperar, estou farto das noites serem iguais aos dias, e de certa forma tudo ser igual, estou farto da minha falta de coragem para arranjar alguém que atenue a tua falta, e estou farto de nunca fechar os olhos para dormir e para me esquecer de ti, estou farto da besta.

A escrita é talvez uma das mais injustas solidões auto impostas que conheço

Desde que a memória me a faculdade de recordar que me recordo a escrever, de inicio pouco, mas à medida que ia envelhecendo, as palavras adquiriram a urgência da pressa, fazendo-me aumentar enormemente a sua produção. Nesses primórdios das palavras, deitava-as no papel livremente, com o gozo que dedicamos àquilo que amamos sem barreiras, deliciava-me com o seu descobrir, vi-as nascer e ganhar as poucas folhas que a minha juventude permitia gerar. Até que a paz da escrita descomprometida acabou quando me descobri comprometido com a idade e com a pressa dessa escrita até ai pachorrenta. À medida que os anos se começaram a acumular e à medida que os sentires substituíram a imaginação no papel de “prima dona da escrita” a medida da escrita aumentou enormemente pela necessidade quase física de registar aquilo que ia vivendo e pela necessidade de multiplicar essas vivências por diferentes ficções literárias. Mais sedento do que nunca pela busca de vocábulos que me levassem a traduzir certas vivências, dediquei cada vez mais horas à tradução desses sentires para o papel, também me sentindo cada vez mais só, apesar de cada vez ter mais pessoas à minha volta. Era esse o lado perverso da minha necessidade, incontornável, pois apesar de não querer sentir essa solidão nunca me poderia dar ao luxo de parar, de a parar.

É claro que experimentei diferentes lugares e companhias na escrita, cheguei passar inúmeras tardes em cafés e esplanadas, seguindo o lugar comum dum certo tipo de escritores, rodeado de gente, de conversas, de ruído, de música, de inúmeros sons, várias vezes fiz composições colectivas, onde alternava uma frase com a do colega de trabalho, ou apenas registava as palavras dos outros, acrescentando as minhas quando tivesse oportunidade para tal, mas tudo em vão, pois a escrita é uma arte de solidão, pois no momento em que registamos as palavras estamos sós, estamos só nós e a folha ou o ecrã do computador.

E o maior absurdo de tudo isto é que as minhas palavras sempre tiveram por destinatários aqueles que amava, ou apenas anónimos dado ter tido o enorme e raro privilégio de publicar os textos e os livros que não paravam de sair de mim. Raramente senti a necessidade de escrever para mim, pois achava e sentia que isso era o equivalente a escrever uma carta para mim mesmo a dar notícias de mim mesmo...

O maior absurdo é ter feito da escrita um objecto de afecto, de me fazer aproximar dos outros, mas que para a concretizar ter de me afastar desses.

Os anos passaram, os anos passam, e a solidão que dizem própria da multiplicação dos anos é cada vez maior, recusando de bom grado a companhia da outra, mas o que hei-de fazer a não ser continuar?

O tempo corre entre as minhas mãos impotentes que se vão engelhando, o tempo passa e eu cada vez tenho mais saudades do tempo que não consigo passar com os que amo, cada vez tenho mais pena das palavras que nunca conseguirei escrever, agarrando-me por isso àquelas que estão ao alcance da minha autonomia existencial, apesar do seu elevado custo

A escrita é talvez uma das mais injustas solidões auto impostas que conheço

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 23/09/2009
Reeditado em 23/09/2009
Código do texto: T1826875
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