MEDOS...
Os medos são aquilo que nos aproxima mais da nossa interioridade, do lado obscuramente sensível que temos dentro de nós
Tive a sorte ou o azar de ter vivido a minha infância e adolescência durante o fim da chamada Guerra-fria. Ao contrário dos meus pais não vivi a “Baia dos Porcos”, nem o conflito cubano, quando a América ameaçou responder com mísseis nucleares se a U.R.S.S. instalasse na ilha alguns mísseis(esquecendo-se que tinha instalado ogivas na Turquia, bem perto das fronteiras comunistas...), não senti a ameaça nuclear no seu auge, mas mesmo assim ainda apanhei os seus estertores. Estávamos em 1985, quando um avião civil sul-coreano, com mais de duas centenas de pessoas a bordo foi abatido por um caça russo, depois de se ter desviado da rota e aproximado duma base secreta comunista. Vivia-se então a era Reagan, a última corrida aos armamentos, e uma política musculada de resposta a qualquer incidente. Na altura, tal como hoje, devorava jornais e telejornais, mas ainda desconhecia alguma da linguagem por detrás destes, e por isso dei comigo aterrorizado quando em resposta ao derrube do Boeing, falou-se na hipótese duma resposta nuclear. Alguns anos antes tinha surgido um filme (salvo erro chamado “The day After”) que mostrava as consequências hipotéticas duma guerra nuclear. Ainda marcado pelas imagens de horror, imaginei as sirenes de alerta na minha cidade (embora julgue que ela nem sequer as tinha...) o pânico da tentativa vã de fuga, a espera, e por fim a guerra. Tinha inclusive sonhado com o momento da chegada dos mísseis, altura que me apanhou no liceu, com a namorada da altura. Estava um dia nublado, mas invulgarmente luminoso, e eu estava a discutir com ela, até que os mísseis chegaram, e o sonho (aliás, pesadelo...) acabou ai, no momento preciso das primeiras explosões. Isto tinha-se passado dois anos antes da crise de 85, e as memórias e sensações ainda estavam presentes, tanto que me enchi de terror ao ver o ar grave e a tradução das palavras do presidente actor, e depois a resposta monocórdica dos Soviéticos, uma resposta breve, a pressagiar o pior. Perfeitamente desorientado e no auge dos meus temores, recorri ao meu conselheiro de “política externa” e revelei-lhe esses temores. Calmamente ele explicou-me que tal não passava dum jogo, que tal nunca iria acontecer, pois numa guerra dessas tudo ficaria destruído, e as guerras fazem-se para se conseguir algo. Apesar do fabuloso poder (e dos biliões gastos…) acumulado nos dois lados, nunca iriam premir o botão, pois isso equivaleria a um suicídio global. Ele não me deu a expressão, mas este jogo de palavras não passava de pura e estafada “retórica política”, um jogo insidioso, um jogo de palavras monstruoso, em que ao invés de mísseis choveriam ameaças, seguidas dum breve recuo duma das partes (e de negociações secretas) ficando tudo na mesma. Mas como poderia um jovem adolescente conhecer o cinismo e essa retórica, palavras de que mal conhecia o significado, sendo por isso impossível descodificar o tal significado daquele jogo de guerra palavroso? O pânico acabou por passar á terceira e paciente explicação e nas palavras suaves de ambos os lados, especialmente do Soviético, pelo sorriso encantador mas firme do “jovem” líder soviético com uma característica mancha na cabeça., cujo aparecimento praticamente acabou com a guerra fria dai a alguns anos. Não sei se por medo da minha ignorância ou se por outra coisa qualquer acabei por me apaixonar pelo tema e gasta e dedicar horas e mesadas ao estudo desse e de outros conflitos. Os anos passaram e hoje sou eu quem descodifico a retórica aos meus familiares, amigos e colegas. Foi assim na Bósnia, foi assim na Somália, Kosovo, 11 de Setembro, Afeganistão, Iraque etc...Hoje rio-me dos jornalistas que veiculam as informações dos militares obviamente manobradas, sem as peneirar, contribuindo para a grande propaganda com que vencedor da guerra fria intoxica a Europa e o mundo e os leva à frente nas suas aventuras militares. Rio-me e lamento... Sob a capa dos valores democráticos, a retórica refinou-se, tornou-se mais cínica, porque parece mais verdadeira, mais honesta. A lógica de se bombardear por causas humanistas ou humanitárias, seria cómica se não se matasse mais gente do que supostamente a que se iria salvar, ou então se envenena os solos e água, porque as munições que destruíram os agressores iam cheias de veneno...
O pior é que perdi este tipo de medos quando o substitui pelo cinismo, que me leva a rir desalmadamente, quando por detrás de mais um “terrível inimigo” estão apenas alguns barris de petróleo que irão pagar caro de mais os custos da utilização das armas dos aliados. Quanto às vidas dos salvadores, enquanto se mascararem os conflitos como cirúrgicos e não se enviarem os desgraçados dos serviços militares obrigatórios, e enquanto a coisa não ultrapassar as centenas de mortos ocidentais, a opinião pública dormirá descansadinha, sabendo que o bem estar que tem à mesa depende um pouco destas soberbas aventuras insanas de meia dúzia de políticos e de militares, cujo lugar certo para estarem seriam ou tribunais ou em quartos fechado e almofadados...
O meu medo é de saber que basta mascarar com a comunicação social motivos monstruosos e obscuros para toda a gente os apoiar, soberbamente manobrada, por propagandas insidiosas que deixam a anos-luz a tão odiada propaganda nazi.
Ha! O meu conselheiro de “política externa” era o meu pai, no terno, paciente e generoso papel de protector dos medos primordiais, antes que a idade e a sabedoria nos fizesse superar esses fantasmas sozinhos.
Há medida que envelhecemos a cama fica cada vez maior, mais fria, mais insuportavelmente vazia, algo que deixara de me importar até...as melhores histórias e de final imprevisível deveriam começar sempre por um até...
Desde que a idade me moldara quase em definitivamente o feitio para o bem e para o mal que me considerava imune a grandes medos, ou receios se quiserem. Claro que haveriam sempre os temores clássicos duma doença terminal, de ser despedido, medos do desconhecido por um certo futuro numa sociedade demasiado instável para nos deixar descansados, dado que apesar da enorme individualidade desta sociedade, o nosso destino assentava nas mãos de terceiros, mas dos medos interiores que eram capazes de bulir com a alma julgara-me a salvo, depois das típicas relações mal acabadas, que além duma dor, nada pequena, me tinha tornado maior porque jurara a mim mesmo não voltar a cair (ou escorregar...) numa coisa do género. Optei então por uma forma de vida celibatária a nível sentimental, não me abstendo de forma alguma das companhias femininas, mas abstendo-me que estas nunca ultrapassassem o plano físico, reservando a espiritualidade para mim mesmo, e fazendo concessões neste campo apenas quando via ou sentia que tal não me iria fazer mossa de maior. Talvez por isso as companhias passaram a durar a paixão da carne, a novidade da descoberta desta e dos diferentes jogos ou atrevimentos, coisa de corpos novos à procura de novidades e nada mais do que isso. Com o tempo o corpo envelheceu e pediu outros repousos, uma certa rotina no prazer, mas como a cabeça para ai não estava virada, continuei a seguir a minha mente, abeirando-me dos quarenta com a sede dos vinte, mas nada me importando com tal, apesar das minhas parceiras serem cada vez mais novas ou cada vez mais loucas, diminuindo por isso a cada nova relação o tempo da duração destas. Houve uma altura em que me preocupei minimamente com o facto, chegando-me a imaginar um alegre sexagenário, a galar jovens com idade para serem minhas filhas ou netas, e a ter sucessos episódicos que alimentavam a minha forma de estar e de ser. Afinal, tinha tudo a ganhar e pouco a perder. É certo que por vezes sentia um vazio, uma espécie de dor, uma necessidade pela sedentarização, a desvanecer-se mal constatava a ausência de cicatrizes mentais e o predomínio dos prazeres breves. Nos jantares de curso, negócios ou de amigos de longa data, enquanto a cada ano que passavam os outros continuavam a aparecer com a mesma companhia e (quando dava para isso) com novos filhos, eu alternava a solidão com companhias diferentes, simpáticas pela ocasião, mas estranhas ao grupo, porque nunca o tinham visto e nunca o voltariam a ver.
Até que...Foi quando me habituei à solidão que tu surgis-te e baralhas-te às voltas a um destino que queria definitivo, mas nunca nada na vida o é, verdade esquecida que voltei a aprender contigo. E o estranho é que nem começas-te por ser uma das companhias vãs, o estranho é que te conheci ao acaso, podias ter sido apenas mais uma conversa com um rosto, ambos a desvanecer-se quando nunca mais vos encontrasse, mas não. O motivo foi banal, igual a milhões de outros, em milhões de situações de milhões de pessoas, e talvez tenha sido por isso que foste uma num milhão, lugar comum escrito, a anos-luz da tua singularidade -Estava numa livraria a escolher um livro, e deparei com um que sempre tinha ambicionado, apesar de nunca o ter comprado. Ouvi então um leve riso atrás de mim e o comentário que já o tinhas lido na adolescência, sendo ele o responsável por teres dedicado a tua vida a viver entre eles, a dá-los a conhecer às pessoas. Intrigado voltei-me e encontrei o teu rosto medianamente afável e um sorriso onde morava uma paixão poderosa que esse rosto defensivo nunca poderia esconder. Assustado pela sua profundidade vacilei e desarticulei meia-dúzia de palavras quase sem nexo, onde achas-te lógica, e talvez piada, apesar de ainda te manteres no papel de vendedora e eu de comprador. Recuperado tive uma vontade perigosa de te conhecer, e amando tu livros, a melhor maneira de lá chegar era através deles; dito e feito, pedi que me recomendasses um para alguém especial, um que não ficasse apenas numa estante mas também na cabeça e espírito do leitor. Alertei-te ainda para o facto dessa pessoa ser difícil, ser de difícil acesso e que por isso a obra a franquear-lhe as portas da alma teria de ser...Interrompeste-me com um sorriso mais aberto e mais teu, foste ao armazém e trouxeste ufana (com o ar dos vencedores antecipados) um embrulho amarelecido e o desafio de eu voltar para lhe confirmar o vaticínio. O preço e o livro são acessórios, porque o importante é que o fui descobrindo, apaixonando-me a cada página, e descobrindo que me estava a apaixonar por ti, pois em cada linha sentia o teu espírito, sentia algo que jurei evitar, mas que me foi impossível desta vez. Enredado nas teias das palavras e já em ti, ainda tive um sobressalto das defesas, adiando a ida à loja algum tempo, até que dei comigo a sentir demasiado um vazio, e a sentir que só poderia ser preenchido se...Ainda hoje não sei como arranjei a coragem, mas talvez esta fosse fruto dum certo desespero, o que é certo é que lá apareci, com um convite para jantar, pois o comentário a esse livro merecia ser feito em privado, nunca em público na frieza duma relação comercial. Tu, claro, adivinhas-te a intenção à légua, pois o convite foi para uma refeição a dois, onde faltava a terceira pessoa a quem fora dedicada a obra. Também não vou cair na parvoíce de dizer como te achei fisicamente, isso passou a ser excedentário quando as páginas me deram a volta a cabeça, e mais excedentário passou depois das horas de conversa, onde o jantar deu lugar à madrugada e o livro se transformara em vida, porque as nossas vidas passaram a ser isso, nossas porque o ascetismo espiritual deu origem à partilha que eu tanto evitara mas que redescobrir amar. Além do amor por certas obras passámos a comungar um amor comum, e o resto minha linda já o sabes, pois a história seguinte passou a ser nossa. Contigo ganhei um algo de novo que escapa a qualquer palavra de qualquer dos nossos livros.
Hoje, agora continuo imune a medos, mas ganhei um contigo, aquele que me tira o sono e o enche de pesadelos na hipótese nunca posta de lado, porque a vida ensinou-me que o nunca é uma palavra ingenuamente mentirosa: hoje o único e último medo é o medo de perder a paixão, de te perder.