FORA DO SCRIPT

“Saiba que lhe esperarei o tempo que for preciso, Custódio. Não esqueça nunca que do outro lado do Atlântico há uma mulher aflita e louca pelo seu retorno, meu amor”.

Leve. Apesar do espanto e do medo, afinal eu estava embarcando para Itália para lutar na 2ª Guerra, me senti leve diante da fala gaguejada, doce e encantadora de Isadora. Saber que minha namorada esperaria pela minha volta me deixava até com a certeza de vitória dos países aliados sobre o eixo.

- Corta! – gritava o diretor – Muito bom, Isadora! Murilo, mais concentração, cara!

Bem, na verdade tudo não passava de uma cena da peça que ensaiávamos. Era a história de um soldado brasileiro morto na 2ª Guerra Mundial. Claro que diante dos olhos enormes e verdes de Isadora eu acabava transformando aquilo tudo numa verdade minha, só minha. Como eu queria que aquelas palavras fossem de verdade... Nem ligaria se estivesse realmente indo para a guerra, já que o simples ato de beijar aquela boca perfeita valeria qualquer sacrifício.

O diretor me chamava atenção quanto à concentração, mas mais concentrado que aquilo era impossível. O problema eu logo notei: o semblante de bobo que me tomava toda vez que Isadora me fitava. O meu personagem, dizia o script, era um homem valente, duro, e que pouco demonstraria os seus sentimentos. Além do mais estava indo para a guerra, ora; estava num estado em que o amor de sua namorada ocuparia, talvez, um segundo plano em suas preocupações. E eu fazendo cara de apaixonado.

- Murilo – dizia-me o diretor –, a sua expressão diante de Isadora não é a esperada. Está com cara de...

- Bobo.

- Isso! Bobo!

O que eu poderia fazer? Na nossa companhia todos estavam carecas de saber que Isadora me fazia perder a cabeça! Aquele jeito como ela prendia o cabelo – deixando alguns fios de cada lado do rosto –, aquele seu corpo, que mesmo coberto por calças largas exibia curvas delicadas, atraentes, perfeitas! Sobre os olhos eu já falei, mas repito: eram enormes e verdes. Até as orelhas de Isadora me faziam tremer; eram pequeninas, porém, salientavam-se sob aquele cabelo, que de tão liso parecia flutuar.

Lembro que ensaiávamos juntos na casa dela. Seus pais, também atores, nos deixavam sempre muito à vontade, porém, o seu namorado não. O cara ligava de quinze em quinze minutos. E o que mais me deixava atônito era o fato de Isadora em momento algum perder a paciência com ele.

- Meu anjo, eu estou ensaiando (...) Eu sei, eu também estou morrendo de saudades (...) Passa aqui depois do ensaio, então, pode ser? (...) Então está bem...

O ensaio e a chance de lhe arrancar um beijo que não fosse um daqueles já tantas vezes treinados iam por água abaixo.

- Bem – eu disse certa vez –, acho que por hoje está bom.

- Mas ainda não terminamos, Murilo.

- Mas o seu namorado não nos deixa... trabalhar, Isadora!

- Perdoe-me, Murilo, é que ele é tão inseguro...

- Então, da próxima vez, chame-o para assistir o ensaio!

- Está louco? Como acha que ele reagiria diante de nossos beijos?

- Um dia ele irá nos assistir nessa peça! Ou não? A estreia é no mês que vem! E outra: você é uma profissional, ora bolas! Ele tem que entender!

- É...

- Bem, de qualquer forma, acho que esses telefonemas estão tirando toda a nossa concentração e...

- A sua concentração, você quer dizer!

- A minha?

- O diretor mesmo já falou! Encenas com cara de bobo diante a mim!

- Era só o que me faltava, Isadora...

- A verdade lhe dói?

- Não! – eu dizia já desistindo de esconder qualquer coisa – A mentira é que me dói! Beijar-lhe de mentira me arranca pedaços enormes. Pronto! Falei!

- E precisava falar?

- Notavas?

- Sempre notei!

- E?

- E o quê?

- O que me diz frente ao sentimento que lhe tenho? O que me diz do meu... amor.

- Tu és o cara mais fofo com quem já encenei, Murilo. Saiba que nossos beijos, apesar de vestirem um caráter artístico, de ensaio, apesar de serem exaustivos às vezes, são beijos que me levam a dimensões que...

- Chega! Sei o que virá depois de toda essa explicação. Você dirá algo sobre amizade e...

- Não! Eu diria algo sobre os nossos personagens mesmo, o soldado Custódio e a sua namorada Maria de Lurdes.

- E o que têm eles?

- Tenho uma proposta.

- O quê?

- É o seguinte...

Isadora confessava que de amores não morrias por mim, mas que sentias, sim, uma atração muito forte pelo “soldado Custódio”. Sendo assim, ela propunha que namorássemos sempre que estivéssemos interpretando nossos personagens. Segundo Isadora, sempre que eu estivesse como soldado Custódio, Maria de Lurdes seria minha, sem limites como o script, por exemplo.

- OK! – eu dizia.

Recomeçávamos o ensaio improvisando totalmente o texto que tínhamos em mãos. Viajávamos de vez na história de Custódio e Maria fazendo com que a roupagem de seus sentimentos transformasse o ano de 1944 em um aconchegante julho de 2009; fomos para cama.

Eu sentia os nossos vinte e poucos anos se escorrerem pelos lençóis de sua cama de solteiro. As janelas abertas deixavam entrar um vento que fazia as cortinas grudarem sobre minhas costas suadas.

No fim de tudo, ambos nus naquela cama estreita, nos olhávamos.

- O que sentes por mim agora, Isadora? – eu perguntava.

- Não conheço Isadora alguma, Custódio!

Eu entendia e me corrigia:

- O que sentes por mim agora, Maria?

- O mesmo que sempre senti, Custódio: amor.

Namoramos durante toda aquela temporada.