O retratista

- Alô! Quem está falando?

- É o Raimundo – o retratista! Posso ajudar senhora?

- Sim, sr. Raimundo! Meu marido morreu – descansou – e preciso que o sr. venha tirar uns retratos dele; - a família, amigos e...

- Irei sim, senhora! A que horas?

- Sr. Raimundo é melhor eu voltar a ligar para o senhor! Preciso conversar com os meus filhos! - Aliás, tem ainda o banho, fazer a barba, vesti-lo... - Muito obrigada sr. Raimundo. Ligo mais tarde, sem falta!

O velho ainda estirado no catre – onde descansou - à espera de um que lhe banhasse, cortasse a barba e o vestisse – como ansiava a companheira. Ela não tinha chorado ainda – faria provavelmente quando o visse de barba cortada, vestido e, confortavelmente recolhido no caixão. Contudo já tinha se acostumado a ver aquela múmia esparramada no catre por mais de três anos – olhos salientes – , faltando-lhe somente as ataduras.

Os filhos não tardariam. Sem a presença deles, nenhuma providência poderia ser tomada. Nove horas da manhã, o sol já lançava seus raios com muita liberdade por todos os lados, inclusive pelas frestas da janela que clareou àquele quarto por tanto tempo. O vizinho mais próximo estava a um quilômetro. Não adiantaria apavorar; tudo se resolveria de alguma forma.

Aproximava das dez horas. Bate à porta. Esbaforida, gorda, suando e, com os olhos a saltar-lhe as órbitas, entra a filha mais velha; Sebastiana.

- Mãe você está só?

- Até às 7:20 h não, filha! - Seu pai ainda movia os olhos!

Logo chegaram os outros: Antônio – Tonico, Isabel e Vicente. O relógio já marcava 10:35 h. Vicente, o que tinha veiculo, prontificou-se a providenciar o que fosse necessário:

- Mãe! – disse Vicente, solícito – vou ao padre, comprar uns pães, ao cartório...

- Vicente! – disse a mãe – preciso que você traga o sr. Raimundo – o retratista!

- Sim mãe! – disse Vicente, demonstrando certo desinteresse.

Banhar, barbear e vestir o finado ficariam a cargo de Tonico. Sebastiana e Isabel pra cozinha; logo a casa estaria cheia da parentela vinda de longe; faminta.

- Tiana! – disse a mãe, rastejando-se – você e Isabel cuidam da cozinha – tem macarrão no armário e essas linguiças – apontando para um pau suspenso em cima do fogão, envergado.

Retornando à sala dirige-se a Tonico – esparramado no sofá:

- E você Tonico vai dar banho, barbear e vestir o seu pai – coloque nele aquele terno cinza que está no baú.

Isabel e Sebastiana foram para a cozinha; a primeira com mais destreza começa as tarefas determinadas pela mãe. Tonico, em silêncio vai para o quarto; acha o terno; cheirando a mofo, empoeirado. Sacode e pendura-o no cabide à direita do catre. Olha o pai; magro, sem sangue e agora sem vida – há anos não a tinha. Põe a bacia no chão ao lado do catre e pensa: “água fria ou quente? – tanto faz, não vai sentir nada!” Optou por água fria. Sentou-se na cama ao lado daquele corpo esquelético que Deus já devia ter chamado há muito tempo; - mas era o de seu pai...

Atônito, continuou observando o pai: despojado, desalinhado, fraco, dependente; sem sorriso, inexpressivo; contrário há anos em que denotava altivez, sobriedade e até um ar de galanteador. “A vida, a velhice e a morte são consequências naturais, mas como é difícil assimilar – pensou”. Acendeu um cigarro. Fumou-o até a metade. Pega o barbeador e inicia parte da tarefa determinada pela matriarca – faria em poucos minutos.

A mãe, após algum tempo, bate à porta e indaga:

- Demora muito ainda, Tonico?

- Não, mãe! Falta apenas vesti-lo! – responde Tonico em pé com o barbeador na mão, observando o pai, de barba feita; como tinha melhorado a aparência.

Dá meia volta, olha a bacia com água e pensa: “Banhá-lo para que afinal? – não fará nenhuma diferença; a barba sim...” Pegou o terno e começou a vestir no finado pai – faltaria pegar o caixão que devia estar em algum lugar. Achou-o na sala. Constatou, ainda, o que a mãe prenunciou, tinha-se consumado: a parentela em grande número espalhava-se pela sala, varanda; outros na cozinha, comendo.

Vicente já havia chegado e, claro, meio a contragosto tinha trazido o sr. Raimundo, que andava de um lado para o outro, aguardando que trouxessem o caixão e a matriarca o ordenasse a fazer os retratos.

O caixão foi colocado na sala, local que o finado não via há muitos anos.

- Sr. Raimundo! – grita a matriarca, esticando o pescoço, apoiando-se na ponta dos pés.

- Estou indo, senhora! – responde Raimundo com voz de um velho cansado, ao fundo da sala.

Raimundo com certa dificuldade sobe na cadeira, procura o melhor ângulo, fotografa da maneira que a matriarca, com dedo em riste, determina:

- Pega nessa posição sr. Raimundo! – gesticula.

- Sim senhora! – responde Raimundo com o peito cheio de câmeras.

O sol estava estalando mamonas e, como o finado foi paciente acamado por muitos anos, seria prudente que o sepultassem até às 17:00 h.

Sr. Raimundo, com os serviços concluídos, não dispensou o almoço preparado por Sebastiana e Isabel, que serviam pratos, lavavam; parecia um restaurante popular servindo pratos feitos em horário de pique.

A matriarca parou ao lado do finado e pôs-se a olhá-lo: pálido, magro, mas bem vestido; coisa que não via há anos. Não teve vontade de chorar. Recebeu os cumprimentos que, por sorte, não demoraram muito. Precisava refletir acerca de toda aquela luta e vontade de viver daquele que era sua única companhia - pela metade, claro -; aqueles olhos saltitantes davam-lhe a sensação de não estar sozinha. Tinha com quem conversar – monologar; nunca obtinha respostas, nem questionava nada; sequer pedia um presente, um carinho, um afago – apenas os olhos buscavam-na por todo o quarto, com um intenso brilho que pareciam falar. Ia sentir falta de vê-los todos os dias às seis horas da manhã abertos e atentos, procurando-a.

Em menos de uma hora aquele semblante desaparecia para sempre; o retrato a confortaria. Uma bobagem aos olhos estranhos, mas necessário à sua convicção da vida. Lembrar-se-ia que um dia aquela múmia trouxe-lhe toda a felicidade do mundo; como mulher, mãe e companheira. E por isso amou profundamente aquele homem, agora transvestido de múmia.

Chegou a hora. Fecharam o caixão. Ela sentiu o coração estreitar-se, dando espaço, desta vez, a um choro reprimido; – perdia-o sempre. A parentela e amigos seguiram para o cemitério a pouca distância dali. Amanhã o quarto continuaria vazio; ausente o olhar terno, penetrante, esbranquiçado...

- Bom dia, sr. Raimundo! – falou a matriarca com voz firme e esperançosa.

- Bom dia! – responde Raimundo, pigarreando: - não tenho boas notícias, senhora!

- O quê! Exclama a matriarca, escorando-se no móvel, pálida!

- Não foi possível nenhum retrato, senhora! Provavelmente o filme estava vencido...

FIM