Linhas...
Sempre gostei de linhas de comboio, não muito de comboios, mas das suas linhas.
Quantas mais melhores, talvez porque elas representam sempre um caminho, fascinante, sem dúvida, mas mais ainda quando se via em fotografias, de perspectiva certa, nas quais elas pareciam adquirir uma dimensão insuspeita, quase “extra-terrena”, pela súbita e bizarra dimensão que assim adquiriam.
O estranho, é que prefiro essas fotografias a preto-e-branco, e sem linhas de electricidade, cujo emaranhado (se bem que “linear”) me confunde demasiado.
Se fosse o senhor do mundo, ou pelo menos deste tipo de caminhos, baniaria-as, obrigando os cientistas a puxarem pelas cabeças (nem que para isso tivesse eu de puxar pela carteira de forma a os incentivar, ou então das minhas polícias, visto o resultado ser quase o mesmo, com mais ou menos custos e suportando os grupos de pressão que invariavelmente se iriam levantar, quer em defesa de uns, quer em defesa de outros...). Por mim, os comboios poderiam passar a ser novamente a vapor, a diesel, ou outra treta qualquer poluente, não me importando com a opinião desfavorável de toda a gente, pois, na minha qualidade de ditador, esse tipo de incómodos nada me afectaria.
Mas, visto não gostar de autocracias, deixo estes devaneios no local onde merecem, nos meus ideários mais ou menos secretos, no seu verdadeiro reino, o resguardo dos meios-segredos.
E voltando às linhas...Prefiro-as vistas de um ângulo que possibilite visualizar o horizonte, pois, sem ele sou incapaz de gostar tanto dessas linhas, não sei porquê, mas talvez porque sem o horizonte elas não passem disso mesmo, de apenas linhas.
Desde quase sempre que me lembro de ter percorrido milhões de quilómetros nelas, de ter descoberto o mundo e alguns dos seus mistérios, de se me ter revelado a história recente, desde o dia em que o primeiro carril foi posto, na Inglaterra da primeira revolução industrial, até hoje.
Lembro com impenitente saudade (por saber nada se ir repetir) as longas horas no transiberiano, em que recordei um crime qualquer escrito por uma grande escritora, também ela amante da minha paixão, além de ver a paisagem quase-impossível da tão gelada quanto mítica Sibéria. Ou então as intermináveis viagens urbanas inter-megalópolis, no coração do planeta civilizado, onde, rodeados do melhor conforto da humanidade, lemos, passeamos, dormimos, ou fazemos outra coisa qualquer, como se estivéssemos em terra, devido à estabilidade do veículo.
Jamais esquecerei a redescoberta do Oeste Americano, a aridez escondida por detrás de alguns cómodos milímetros de vidro, centímetros de metal e metros cúbicos de agradável atmosfera modelada vinda do ar-condicionado. Como num filme, mas bem real, ao alcance de qualquer paragem para recolher passageiros, e muitas outras viagens perdidas no mundo mas demasiado perto de mim.
Se me perguntarem, é obvio que prefiro os comboios menos avançados, tanto pelo preço mais barato, como pela pouca selectividade das pessoas. Caramba! O comboio é o mundo, e um mundo liofilizado pela tentativa vã da busca de uma perfeição impossível torna-se insípida! Adoro misturar-me, entrar nas mais diferentes histórias que populam os diálogos dos passageiros, viver, nem que seja por breves segundos (o tempo de passar entre duas pessoas) as suas angústias, dramas, alegrias, ou tudo quanto tenham dentro de si para transmitir, e que um estranho por acaso apanhou na diáspora até ao assento mais próximo, alimentar-me das suas expressões, tão diversas como a humanidade, tão fartas por nunca mais chegarem ao destino, e por isso mesmo tão genuínas.
Pode-se ter um avião para poupar caminho e perigo, pode-se querer o individualismo de um automóvel, mas nada se compara ao prazer da contemplação, brevemente intemporal, emprestada pelo comboio e as suas linhas. Só nelas se adquire a verdadeira saudade, só nelas nos é permitido sermos nostálgicos.
A tristeza e o amor nunca são os mesmos quando os vivemos numa estação, a conjunção de linhas por excelência. Há qualquer coisa de diferente, de impar...Custa mais separarmo-nos de alguém ali, porque temos a terrível sensação de perda, mas ao mesmo tempo de a podermos agarrar, de enganar um certo destino. E não há nada que se compare ao receber alguém vindo de um comboio. A alegria absurda de vermos o rosto a passar por nós, a parar dai a pouco, o atirar displicentemente saudável da bagagem para o chão, e aquele abraço único à alma que se escapou do interior do dragão de ferro!
Mas em pleno surto tecnológico dos Hig-Spedd-Trains, cuja derradeira maravilha os ameaça carrilar sobre uma estranha linha de magnetos (segundo os seus inventores para melhorar o conforto!) o sonho ameaça desaparecer. Exasperam-me estes homens da ciência, cuja demência pelo futuro ameaça e destrói quase sempre o romantismo passado!
Na realidade, mal ando de comboio, as viagens que tenho, retirei-as da televisão, principalmente dos canais temáticos, onde as viagens dos outros servem para me compensarem da sua ausência. Vivo na mesma cidade desde há demasiado tempo, ando de carro, no qual transporto a mulher e filhos. Mas, não sei porquê, alimento a paixão por linhas desde puto. Lembro-me de ir para a estação mais próxima e de ficar a contemplar as linhas intemporalmente, até à altura do jantar. Sabia que um dia iria partir por ali, em direcção ao Norte, onde morou uma namorada minha. Planeei mil vezes pegar na mochila e ir ter com ela, mas foi ela que veio até aqui para estudar, ficando depois comigo, e não querendo regressar.
Ainda hoje, sempre que posso, sem o revelar a ninguém, saio de casa às escondidas, sempre a horas proibitivas, inventando reuniões, para ficar na plataforma de embarque sozinho, como se esperasse o comboio, mas ficando apenas ali, a olhar para o horizonte, perdido, sem outro objectivo que não seja o de olhar esse caminho, essas linhas.