Uma data de histórias sobre umas coisas quaisquer…

Eram pessoas, a maior parte delas passou por mim demasiado depressa para as viver bem, mas esse tempo, apesar de escasso, foi suficiente para captar a sua essência, e com ela criar outras pessoas, outras histórias, outros destinos, mas que as visadas, apesar de todas as metáforas, sabem ser delas, pois foi esse esboço de humanidade que me transmitiram, e com ele aprender a compreender-nos melhor

Foram muitas, houve até uma altura em que apareceram com tanta frequência que só retive algumas, por manifesta incapacidade mental, ou por defesa interna, de maneira a fazer uma espécie de triagem das vivências, colhendo as melhores para mais tarde as trabalhar, as pôr no papel, e melhor as recordar. Pode parecer algo narcisista, mas prefiro estes contos a fotografias, pois, ao contrário delas, estes não são estáticos, fazendo-me recordar a paisagens, situações e vivências já idas, mas subliminarmente presentes.

São tantas que, se atribuísse a cada uma uma linha, encheriam vários contos. Como no entanto acho injusto limitar a vida de alguém (mesmo que maioritariamente ficcionada) a apenas essa linha, nunca o fiz e recusar-me-ei sempre a tal. Penso, modestamente, que mesmo o maior dos mestres da síntese concordaria comigo. Se tiveram paciência para estatística, estabeleçam a esperança média de vida, as actividades feitas durante estas, e depois tentem imaginar as sensações já vividas pelo ancião ao longo da vida. Demorei apenas alguns segundos a escrever esta frase, por isso talvez seja fácil ou menos difícil concordar comigo.

E há certas pessoas, cuja passagem por mim se limita a uma fotografia cerebral, ou a filmes de breves segundos que, de facto, pouco tenho a dizer, pouco tenho a dizer, ou a fantasiar delas, fazendo-o apenas porque, inexplicavelmente as fixei na/para a eternidade da minha vida.

Como o primeiro alcoólico que conheci, bem mergulhado na infância. Para mim era apenas um barbudo malcheiroso, que “passeava” entre as três tascas do bairro, dormindo ora a seu lado, às horas mais desencontradas, ora em casa (miserável, segundo se dizia).

Era apenas um alcoólico, como a minha infância o pintou, até saber que tinha sido, outrora, jogador de futebol, pretendido por um dos grandes, tendo falhado o negócio e ele, por motivos que sempre me foram desconhecidos.

Como qualquer garoto, adorava futebol, fazendo a indispensável colecção de cromos, enquanto participava nos incontáveis jogos com que ocupávamos o espaço das garagens, ou, à falta destes, às estradas menos inclinadas, e talvez por esta adoração deixei de olhar de aquela figura como aquilo para que ele se deixara arrastar, preferindo o passado, essa altura, talvez presentemente demasiado estranha ao ex-jogador, onde os mesmos olhos que o condescendem na bebida o veneravam na arte da bola, antevendo-lhe um falso mas promissor futuro.

Mais tarde, quando decidi tornar a preocupação das pessoas como minha profissão, interroguei-me, e ainda me interrogo, sobre as razões que o tinham levado à miséria. Abandonado, ou meio-abandonado, pois tivera a sorte de ter sido acarinhado pela população, que tanto velava pelo estatuto, pagando mais um copo, ou pela higiene, dando-lhe, com grande estardalhaço, como não podia deixar de ser..., banho em público, e rapando o cabelo e as barbas, na rua, quando a decadência ia longe demais. Provavelmente esta “sorte”, era apenas a devolução das tardes mágicas onde o seu corpo equilibrava de forma impossível não a garrafa , mas a bola, devolução por ter feito sonhar alguns dos seus conterrâneos, que, sabendo ir seguir o destino dos pais, sabendo nunca ir sair daquela terra, sonhavam com a perspectiva do amigo, um dia, nos relvados e televisões de tudo o mundo os levar a afirmar orgulhosamente que o tinham conhecido e até, partilhado os primeiros tempos de bola.

O destino fora-se, mas a dadiva pela possibilidade nunca se desvaneceria do imaginário dos seus protectores.

Ou talvez o ajudassem apenas instintivamente, no mesmo gesto impensado que faz os portugueses contribuírem para campanhas de solidariedade mais ou menos desconhecidas, onde basta apenas haver alguém em situação dramática, para as razões impeditivas darem razão à nossa afamada generosidade de desfavorecidos. Digo isto porque não me lembro de nenhum povo rico contribuir, como nós para as misérias que o próprio processo produtivo produz...

São pessoas breves, mas que estão cá, e não há forma de saírem, para meu bem, e talvez seja por isso que tenha abraçado esta carreira das letras, porque a vida não para e há sempre algo para escrever…

Como aquela rapariga, que conheci numa festa típica de uma cidade do interior, arrastado por um antigo colega de liceu que, contrapondo às minhas reticências de agenda viciosamente ocupada os bons tempos passados, lá me conseguiu arrastar para aquela cidadezinha perdida no meio de nenhures, mas de animação rija, como de resto pude comprovar. Entretanto o tempo fizera “mossas” nele. Convidado como estava a ficar hospedado em sua casa, esperava, depois da inevitável saída nocturna, as patuscadas habituais que antecediam o duvidoso merecido repouso. E assim pensei, até que, mal parámos o carro em frente da pequena vivenda onde morava, um rosto feminino nos veio saudar.

Irmã? -Pensei intuitivamente.

Logo acompanhado de outro, mais pequeno, de três anos.

Sobrinha?

-Pá, apresento-te a Marta, minha mulher, e a Raquel, a “herdeira”.

E, apesar de ficar feliz pela felicidade do meu amigo, fiz antecipadamente as exéquias fúnebres de uma farra solteira à antiga.

Apesar dos convites a ficar totalmente à vontade, sabia que as coisas não seriam assim. Faltava-me a coragem para o resgatar para a causa da noite, apesar de Marta frisar bem que aqueles dias seriam diferentes, ou seja, que a cara metade poderia voltar aos “bons maus hábitos”.

Descansei o possível choque de vontades, através do pacto da “meia-noite”, isto é, até essa hora ele estava comigo, apresentava-me aos amigos (enfim, ambientava-me...) e depois voltava a casa. Estratégica certeira, que deixou todos satisfeitos (se bem que, por vontade dele, facilmente a meia-noite seriam três da manhã.

As pessoas da terra eram simpáticas, e, além do mais, os copos eram a melhor das diplomacias, pelo que me esmerei, dando também a perceber, que “os moços da cidade”, em nada ficavam a perder aos outros. Foi rija a farra, tanto que, quando o sol nos começou a saudar, já assumíramos o exagero, preparando-nos para regressar ao “poiso inicial”.

A madrugada começava a saudar os olhos temperados pelo excesso de dança, e, sobretudo de álcool, quando reparei numa mulher, a meio dos vinte, deitada do jardim que cercava o coreto do principal parque da cidade, local principal da festa, mas descansado diurnamente. O abandono incomodou-me, um abandono que achei estranho, e que mais se aproximava de desprezo, reforçado pelo que me disseram os amigos que Carlos me foi apresentando -”É uma artista...”querendo isto dizer que era uma rapariga da terra, cuja vocação a fez abaular para um curso de belas artes, onde os sonhos criativos foram desfeitos pela perspectiva de se ter que remeter ao destino de dar aulas, a alunos, a maior parte analfabeto à sua sensibilidade. Esta parte sabia-a antes de falar com ela, pela experiência de ter visto o cenário demasiadas vezes, num país de talentos imensos, mas de pouco jeito na arte de os aproveitar. Recusando as aulas, voltou à terra e tornou-se artesã e explicadora em “partime”, de alguma da miudagem a frequentar o ciclo. Para alguns país novos-ricos era até um sinal de status ter esta espécie de professora privada, esta “doutora”, a velar pelo aproveitamento dos rebentos, mal se importando com a fama de excêntrica, facto para o qual contribuía o preço por hora barato que ela fazia questão de ter.

Ao que parece, em cada festa ela repetia o feito de beber até se deixar vencer pelo cansaço e adormecer na relva, talvez a recordar outros tempos, de Queimas das Fitas, de outras cidades, onde a sua diferença se diluía no cosmopolitismo dos grandes centros.

Para as gentes da terra, habituadas a excessos, mas não tão heterodoxos, ela era maluca, de pouco valendo ser pessoa de fácil trato e de confiança, e por isso deixada à sorte, numa terra onde nunca correria perigo físico.

Perturbado pelo quadro, deixei os meus companheiros de noitada, que, vencidos pela noite se retiravam lentamente, fui ter com ela. Completamente inanimada, não mostrava qualquer sinal de reacção. Informado por eles da sua morada (perto do café mais conhecido, não muito longe dali) peguei nela e levei-a, delicadamente até casa. Pelo caminho foi acordando, olhando-me com estranheza, mas deixando-se levar.

Uma vizinha mais madrugadora, espiolhou a boa vontade com maus olhos, pensando certamente ir aquele estranho fazer coisa má à outra estranha.

-Bom dia, sou amigo do Carlos, filho do padeiro. Vi a moça desmaiada e decidi ajudar.

-Então deixe-a ai que o meu filho é enfermeiro e está habituado a estas cenas...

Mas até ele chegar ainda passou um bom bocado, durante o qual a tentei manter acordada, falando com ela, passando-lhe pelo rosto a água de uma nascente próxima.

Pouco depois voltei para casa, não contando a coisa a ninguém, nem mesmo quando, dai a poucas horas me encontrava de novo nas lides de Baco. Sentia por ela a estranha empatia que temos em relação aos apatriados, acrescida pelo facto e alguns dos meus melhores amigos também serem “artistas”. Foi por isso com agrado que vi uma cara vagamente conhecida a aparecer entre a multidão, dirigindo-se a mim. Ainda na dúvida, e não querendo criar mal-entendidos, permaneci quieto e mudo, esperando que algo acontecesse.

-Sou a rapariga de ontem e queria-te agradecer por me teres ajudado...Foi a vizinha que me disse quem era o bem-feitor...Está habituada a ver-me assim, mas não acompanhada. Mal me lembro do que falámos, mas sei que foste correcto, foste...amigo, na altura em que estava a precisar de um...

-Não foi nada de especial, de onde eu venho, não passa um mês sem o fazer.

-Sem segundas intenções...és um tipo estranho...

-Tento ser útil...

-De qualquer das formas é incomum essa ajuda...

-Gosto de o fazer, só isso...Além do mais estas pessoas, tal como tu, acabam por ficar...Estou a escrever um livro hà muito tempo, falta-me o jeito, e as personagens são feitas de gente como tu, de histórias como esta que vou encontrando... Ou seja, a ajuda não é totalmente vã, apesar de, logicamente, não a prestar só para fazer o livro...Esse livro é a forma de não vos esquecer.

Depois de lhe ter dito isto, ficámos os dois a olhar um para o outro, sem motivo de conversa, mas com vontade de estarmos juntos. Sentíamos que as palavras estavam a mais, e por isso ficámos apenas a ler o olhar um do outro.

Não falámos pois muito mais, trocámos apenas alguns dados pessoais e números de telefone, quando a noite acabou, que sabíamos nunca ir utilizar, porque aquela noite estava destinada a ser apenas isso, uma noite, onde qualquer promessa de vínculo posterior poderia destruir o sentir daqueles momentos. Ficou apenas um “se calhar”, com a carga subjectiva que ela comporta.

Nunca mais a vi, ou ouvi falar dela.

Por várias vezes pensei nela, ainda hoje penso, não sei bem porquê. Tive muitas conversas e momentos mais interessantes, mais ricos, mais tocantes, mas aquelas horas ficaram aqui dentro, suficientemente presentes, para as registar .

Se calhar ela veio um dia à minha cidade, muito provavelmente, nem que fosse pelo simples facto dela ser o centro administrativo de toda a região que uma deficiente descentralização, tornou incontornável para tratar de alguns assuntos “mais complicados”, e por algum motivo se tenha recusado a discar os números que a ligariam outra vez a mim.

Mas talvez todas as dúvidas sobre a ausência sejam explicadas por uma frase que li algures, frase que dizia “as coisas simples serem as mais belas”. Os nossos momentos foram assim, simples, pontuados até por alguma ingenuidade, tanta que me sinto intimidado por os revelar, mas tiveram qualquer coisa, que me fez sentir, e ainda ter saudades dela.

Seria um bocado lógico se tivéssemos trocado beijos e estes nos levassem para caminhos de afectos mais íntimos, afinal já tivera noites assim, mas se calhar foi essa promessa de intimidade que ficou por cumprir que fez com que ela ainda hoje esteja dentro de mim, ao contrário das outras, cuja recordação esta embrulhada numa nebulosa de cheiros de corpos, palavras tolas, palavras que se dizem nessas ocasiões e nada mais…

E provavelmente ela não se recordará, provavelmente só ao ler estas linhas, e muito para além das metáforas onde a quis proteger, a memória de um estranho e do seu livro, do qual lhe prometeu fazer parte, e talvez elas a façam sentir melhor, sair do mutismo dar azo às asas que lhe adivinhei e que outros criticavam pela ousadia de as ter.

Sim…o tempo não para de passar e eu de conhecer mais e mais pessoas que merecem ver as suas histórias anónimas no papel, se calhar é isso que faz de mim um escritor, porque se não for eu, quem registará essas histórias que se podem perder “no tempo como lágrimas na chuva…”?

Ou se calhar era apenas como eu, procurando, por motivos desconhecidos, matar a sede através da escrita através da descoberta de novas coisas, em recantos insondáveis, no interior ou exterior do meu objecto de eleição que são as pessoas, materializadas nesta ocasião, numa data de histórias sobre umas coisas quaisquer...

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 19/09/2009
Reeditado em 19/09/2009
Código do texto: T1819388
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