TRAQUINICE

Ainda hoje trago na mais viva lembrança um fato ocorrido comigo em minha terra natal, uma pequena cidade do interior de Minas, fato esse que não esqueço devido às peripécias nas quais foi envolto.

Nascido numa pequena porém agradável cidadezinha da região centro oeste de Minas, Cedro, mudei-me com a idade de apenas um ano para a capital, Belo Horizonte. Acostumado, porém, com os meus parentes de lá, principalmente minha avó, sempre que podiam meus pais mandavam-me passar uns tempos em companhia deles.

Traquinas como quê, travesso e por demais inclinado para as diversões arriscadas, eu dava trabalho à minha pobre avó. Aos dez anos eu era um garoto esperto, vivo, inteligente e curioso. Gostava de me entregar a aventuras que só me ofereciam uma boa sova quando eram descobertas.

Ainda assim, sempre que se oferecia uma oportunidade lá estávamos, os meus colegas e eu, para aproveitá-la e para fruirmos o prazer da realização de simples coisinhas que julgávamos grandes proezas.

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Situada numa rua larga coberta de cascalho, o casario baixo e humilde encardido pelo tempo, a frente amarelecida pela poeira da estrada, muito bonita, até, em vista das outras pobres casinhas, estava a de minha avó. Ainda agora, ao escrever estas páginas, recordo-me com exatidão das suas características. Era branca, o teto coberto de telhas vãs, com duas janelas pintadas de azul dando para a rua. Um banco de madeira recostava-se à parede da frente, bem em baixo da janela do quarto de minha avó, seguido por um limpa-pés logo à porta da rua. À esquerda, um muro pequeno escondia atrás de si uma bonita e bem cuidada horta.

Casa onde nasceu minha mãe, onde nasceram meus outros parentes queridos, construída em tempos idos pelo meu falecido avô, era ela um palácio encantado para meus sonhos de criança, para meus divertimentos, para minhas inúmeras travessuras.

As outras casinhas eram de aspecto mais ou menos semelhante ao dela, todas deixando transparecer de modo geral e sem peias a pobreza do lugar. Mas estavam sempre asseadas e nelas se encontrava uma gente hospitaleira, simples, sempre disposta a oferecer todo o conforto frugal, toda a sua indizível boa vontade aos forasteiros. Era assim o Cedro, seus costumes, sua gente.

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Um pouco abaixo, à esquerda da rua, do mesmo lado da residência de minha avó, ficava um casarão sombrio de propriedade duma preta velha, Dona Etelvina, relíquia dos tempos da escravatura. Morava só a velhinha, tendo um sobrinho que muito pouco a visitava. Sua vida se resumia nos cuidados da casa, do quintal, das galinhas e das frutas. Mormente das frutas.

Seu quintal era uma verdadeira chácara. Eu, do meu terreiro, contemplava com água na boca os belos frutos que pendiam das árvores do seu lado. Eram goiabas, mexericas, jambos, laranjas, ameixas, amoras, cajus, jabuticabas, mangas, tudo isso em abundância.

A velhinha enxergava pouco mas era de uma audição à toda prova. Bastava um ruído de folha seca caindo duma mangueira ao chão, era o suficiente para que ela chegasse ao terreiro, resmungando, desconfiada de meninos que estivessem querendo roubar seus lindos frutos.

Eu imaginava meios de entrar no terreiro da velhota e saboreá-los, pois alguns deles já apodreciam. Dona Etelvina estava alquebrada e não podia apanhá-los. Ficavam à mercê dos passarinhos buliçosos, dos sanhaços atrevidos e dos sabiás laranjeiras que se regalavam com as frutas maduras.

Eu, do meu quintal, contemplava tudo isso num imenso desejo de entrar lá e comer, e chupar, e engulir a mais não poder! A anciã, porém, estava sempre alerta. Tinha ainda um cachorro preto, o Veludo, o qual apesar de velho também prestava para anunciar a aproximação de estranhos ao quintal.

Ficava eu, pois, horas a fio sentado em baixo do pé de manga lá de casa, a fazer planos, a calcular, a observar, etc. . Esperava apenas uma oportunidade que saberia não desperdiçar.

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Um pouco acima da casa de minha avó, situada na parte mais alta da rua, estava a morada de um grande colega meu, o Sil Careca. Foi ele um companheiro de aventuras inesquecíveis, amigo de todas as horas. Garoto dos seus dez anos, da minha idade, esperto, manhoso, inteligente, era mestre em travessuras. Não havia diversão perigosa à qual ele não aderisse. Estava sempre disposto a tomar parte. Tinha outros irmãos mais novos que só viviam no cerrado, dia inteirinho, cortando lenha pra sua casa. Ele, encarregado que era de vigiá-los, despistava e encontrava-se comigo para, juntos, irmos caçar passarinhos, nadar no “co’rgao”, procurar mel de abelhas em colméias escondidas nos píncaros das árvores, pegar cavalos no pasto, jogar bola, enfim, era um companheiro sempre pronto para qualquer divertimento. Seu pai, carapina, trabalhava na fábrica do lugar. Sua mãe lavava roupas na fonte. Tinha duas irmãs, mais velhas, que também trabalhavam na fábrica. Todos trabalhavam. Ele era o mais folgado, ou por outra, era o único vadio de toda a turma. Levava os irmãos a cortar lenha e escapulia para ir brincar.

Ah, bons tempos aqueles! Relembro com saudades as deliciosas aventuras inocentes da minha infância naquele pequeno lugarejo. Tempos que não voltam mais. Quantas pessoas não dariam tudo para voltar a ser criança, garoto despreocupado, alegre e atrevido, vendo tudo na vida significar para si apenas diversão. Quantas pessoas! Eu também daria. Daria tudo para ver-me de novo, como se num sonho, no meu querido e saudoso Cedro, cercado de todos os meus amigos daquela época, no meio de todos os deleites da minha infância! ...

Sim, eu daria tudo para novamente correr por suas campinas floridas, por seus prados verdejantes, para poder embeber-me na contemplação das suas matas, do “co’rgão” saudoso, serpenteando por entre os pastos tufados de vegetação gorda e sadia, tudo isso pintado com as mais belas cores de toda a natureza! Bons tempos aqueles! Temos em que cada idéia era uma diversão, cada diversão uma aventura, cada aventura um prazer enorme, puro deleite! Jamais esquecerei as gostosas temporadas que lá passei, as doidas traquinices que praticávamos, eu e meus pequenos amigos de infância, meus inesquecíveis amigos!

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Os outros garotos do lugar tinham um grande respeito por Dona Etelvina. Tremiam só em ouvir falar o nome dela. Quando n’alguma trinca se falava nos frutos do quintal da velha havia sempre alguém que dizia:-

“- É, são lindos os frutos. Eu gostaria de entrar lá pra comer um bocado. Mas como é que entra? Aquela diaba escuta até pena que voa! E depois tem o Veludo pra latir quando chega gente. Não! Não quero saber de trapalhadas. Se for pra entrar lá, Betinho, não conte comigo!”

A anciã além de esperta era malvada, diziam. Tinha em casa um grande piraí (chicote em tira de couro cru), e a qualquer novidade saía com o dito ao terreiro. E batia mesmo! Coitado daquele que lhe caísse nas mãos. Uma vez, contam, pegou o Mateus da Dosina no seu quintal e deu-lhe tamanha sova, deixando o infeliz com traseiro todo inchado e as pernas roxas de tanto apanhar. Rabanada de teiú não doía mais que o piraí da Dona Etelvina. E depois tinham medo de apanhar mais em casa, quando a travessura fosse descoberta. Aí sim, o negócio ferveria!

Mas o Lú Preto, outro meu colega de aventuras, já não pensava desse modo. Era destemido o negrinho. Sonhava, como eu, em penetrar às escondidas na propriedade da velha e roubar os frutos, já apodrecendo nos galhos. A danada não os comia, não os vendia e nem os dava a ninguém. Era isso o que me deixava irritado. Ela bem que podia mandar um moleque subir às árvores para apanhar alguns frutos pra ela, dando-lhe também uma porção. Mas tal não acontecia nunca. Era gananciosa. Contentava-se com um ou outro que caísse ao chão de maduro. Não permitia a ninguém tocá-los, a sovina. Contudo, eu planejava o assalto, em companhia do Lú Preto e do Sil Careca. Faltava apenas combinar o plano. Numa manhã de sábado ensolarado saí à procura dos dois para ultimar os preparativos da perigosa empreitada.

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Havia nos fundos da casa, entre um valo e a cerca do quintal, um campinho onde a garotada se reunia para jogar suas peladas. Foi pra lá que me dirigi, na certeza de encontrar Lú Preto.

Quando cheguei ele estava num magote de meninos, examinando a bicicleta do Ronaldo do Zé Duzentos, comprada pelo pai em segunda mão. Esperava a sua vez de dar uma voltinha, era notório. Fiz-lhe um sinal e ele se aproximou. Contei-lhe rapidamente o meu desejo, pois sabia que aquela idéia também o estava azucrinando.

“- Lú, topa entrar no terreiro da Dona Etelvina hoje?” – Ele coçou a carapinha e respondeu, sorrindo amarelo:-

“- Topo, mas que hora?”

“- Encontre-me debaixo do pé de manga lá de casa, depois do almoço, tá? Agora vou chamar o Sil Careca.”

Rumei para a casinhola baixa, cujo terreiro também terminava no campinho. Passei a cerca de arame farpado, adentrando o quintal. Já debaixo da coberta da cisterna, gritei:-

“- Siiilll ...”

Logo ele apareceu na porta da cozinha. Trazia na mão uma espiga de milho cosido.

“- Quer provar, Betinho Está gostoso.”

Debulhou um punhado em minhas mãos. Comi, agradeci e disse-lhe:-

“- Sil, o Lú e eu vamos lá na Dona Etelvina hoje, você vem também?”

“- Claro, ora essa! A que horas?”

“- Depois do almoço, no pé de manga lá de casa, combinaremos tudo. Eu espero você lá então, viu?”

“- Tá legal.”, disse o malandro.

Fui ligeiro pra casa, sorrindo para mim mesmo. Estava certo de que tudo correria às mil maravilhas.

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Almocei pouco devido à ansiedade que me dominava. Repousei alguns minutos, sentado no banco da porta da rua a olhar displicente os cavaleiros que passavam. Um carro de bois descia preguiçosamente a rua, quebrando a monotonia e o silêncio da hora com seu gemido e o brado do carreiro suarento, instigando os animais:-

“- Ôaaa, Malhado, Sertanejôooo! ...”

Uma quietude imensa dominava toda a ruazinha. Meio dia, sol a pino. Levantei-me sorrateiro do banco e chispei para o fundo do quintal. Minha avó costurava na sala, absorvida no trabalho. Encontrei o Lú, impaciente, lascando uma forquilha de goiabeira com o canivetinho enferrujado que ele não largava nunca. Enquanto conversávamos o Sil Careca chegou. Aí então eu falei:-

“- Bom, minha gente, entraremos lá em baixo, mais no fundo do terreiro. Muito cuidado pra não fazermos barulho, pois nem é bom pensar no que poderá acontecer se a bruxa ouvir. Ela deve estar tirando uma soneca mas tem o sono leve. Cada um dobra a camisa, amarra suas pontas, fazendo um saco e enche de frutas. Não vamos comer nada lá dentro, ouviram? É perigoso! Aqui fora, nós “lavamos a égua”, tá legal?”

Tudo combinado, entramos de mansinho. Pisávamos com imenso cuidado, evitando as folhas secas. Subi num grande pé de ameixas, o Lú empoleirou-se num pé de caju mais atrás e o Sil, afoito, trepou numa jaboticabeira carregadinha, rente à cerca do fundo.

Começamos a pilhagem, cada qual mais afobado. Ante tamanha quantidade de saborosas guloseimas, começamos sem querer a fazer uma grande algazarra. O Lú era o mais assanhado. E tanto mexeu, tanto virou que, num dado momento, despencou do alto do pé de caju. Foi uma barulheira infernal, gritos do negrinho, estalos de galhos partidos, folhas secas, o diabo! O medo apoderou-se de cada um de nós.

Nisso, atraída pela bagunça e pelos latidos do cão, o Veludo, a megera apareceu em cena empunhando o seu famoso piraí. Debandada geral! O Sil embarafustou-se pelo quintal afora, seguido de perto pelo Lú, amarelo como cera. O tombo não dera para machucá-lo, porem levara um susto tremendo. Eu tentei pular do pé de ameixa, mas com o impulso o galho partiu-se. Caí rente à cerca de arame farpado, ferindo a coxa da perna direita. Apavorado, corri como um cabrito pra casa, pouco me importando com o sangue que escorria pela perna.

Esse episódio terminou, como todos os outros terminavam sempre, com uma grande sova, difícil de se esquecer.

E hoje, daqueles tempos de aventuras só me resta a lembrança e uma única testemunha:- a cicatriz do ferimento! ...

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B.Hte., 1958

RobertoRego
Enviado por RobertoRego em 19/09/2009
Reeditado em 20/04/2010
Código do texto: T1819295
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