MOCAMBO

Recordar é viver, diz um provérbio popular. Sigamos, pois, o que reza o conceito. Quantas e quantas vezes, ao nos assaltar a tristeza, os sofrimentos e as dificuldades desta vida, quedamo-nos pensativos a reviver o feliz tempo da nossa mocidade, os alegres e coloridos quadros da nossa juventude.

Quem, então, quando menino, viveu em algum sitio, roça ou fazenda, sente ainda mais. Sofre ao comparar os tempos despreocupados e repletos de diversões, de garoto, com os dias turbulentos e incertos da época atual.

Meu pai é um desses sofredores. Viveu em criança num dos mais aprazíveis recantos deste Estado e, se a solidão o atormenta, põe-se a recordar o seu tempo de garoto, as suas inúmeras traquinadas, como se buscasse nisso um consolo para o seu atribulado espírito.

Hoje o escutamos relatando fatos característicos da sua meninice. Fatos agradáveis, pois daríamos tudo para passar por aquilo que ele passou. Porém, a nossa infância foi diferente.

Não provamos os prazeres de correr no lombo dum cavalo em pelo, através as pradarias, nem de nadar em límpidos e borbulhantes regatos, nem de comer frutinhas silvestres, de apanhar filhotes de periquitos em casinhas de joão-de-barro abandonadas, escondidas nos altos das arvores, enfim, de uma quantidade impressionante de simples futilidades que embelezam a vida de qualquer moleque.

A nossa garotice foi vivida por detrás de um portão de ferro, sem poder sair à rua para não nos expormos aos perigos do trânsito, respirando o ar abafado da cidade, carregado de fumaça, pó e cheiro de gasolina, completamente adverso do campestre.

Como ele, sinto satisfação em falar de sua infância como se fosse comigo, como se tivesse sido eu o felizardo em provar o néctar da simples alegria de viver intensamente, a qual ele, meu pai, provou no paraíso do Mocambo.

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AS FÉRIAS

“Com a idade de apenas doze anos internaram-me no Instituto João Pinheiro. Para mim, acostumado com a liberdade na minha terra natal, Januária, até ali criado na beira do Rio São Francisco, foi um terrível pesadelo. Mas, com o tempo fui-me habituando, chegando até a me conformar. Entretanto pensava com ansiedade nas férias que se aproximavam. Estaria então livre para voltar a Januária e gozar as delicias que somente ela me oferecia.

Dezembro chegou e com ele as férias esperadas. Uma imensa alegria dominava todo o estabelecimento. Os dias seguiram dentro de um ritmo que foi se tornando de todos conhecido:- os parentes iam e vinham, levando os seus garotos internos para gozarem as férias em casa, junto da família.

Os meninos, afoitos, de malas já prontas, com enorme aflição a pressionar-lhes o peito, esperavam os seus conhecidos. E quando uma buzina anunciava no pateo um carro chegando, dezenas de cabeças assomavam às janelas, todos os olhares fixos no auto, cada qual esperando sair dele um parente.

Eu, por certo, andava mais ansioso ainda que todos eles. Não sabia quem viria me buscar. Minha mãe, viúva, com outros três filhos para olhar, não tinha tempo pra nada,os pimpolhos tomavam-no todinho. Minha tia Amélia, coitada, já velha, não suportaria a longa viagem:- oito horas de trem, em carros obsoletos, desconjuntados, a moer os ossos dos passageiros, não era coisa para a sua idade.

Foi uma sensação, portanto, para mim a chegada à instituição do meu tio Augusto. Viera buscar-me. De malas arrumadas, aguardei sôfrego a hora da partida.

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A VIAGEM

O trem corria velozmente. Eu, com o rosto à janela, respirava feliz aquele ar fresco e saudável, tão meu conhecido. Paisagens agrestes se desenhavam ante meus olhos risonhos:- um pontilhão ficando para trás, um grotão escuro, deixando-se ver apenas as copas das árvores, um bambuzal espesso a balançar suas hastes ao vento, um ribeirão correndo paralelo à linha férrea com suas águas mansas e barrentas.

Já cansado, saboreei uma paçoca oferecida pelo meu tio, recostei-me ao banco e adormeci contente. A noite já começava a encobrir toda a natureza quando o trem parou no seu destino:- Januária!

Esfreguei os olhos, agitei os braços, bocejando. Apesar da pouca claridade existente, ainda reconheci alguns caracteres da estação:- a casinha do guarda-linhas, lá na extremidade da coberta de abrigos para passageiros, a casa do Major Bento, fronteiriça à estação e o grande rio, o saudoso Rio São Francisco.

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OS JENIPAPOS

Bem no fundo do quintal da casa de minha tia Amélia, ficava um grande pé de jenipapos. Ao lado deste um galinheiro expondo aos visitantes quase toda sorte de aves:- galinhas, patos, perus, marrecos e até um casal de seriemas. Mais no fundo um chiqueiro, com uma dúzia de gordos capados, andando sempre à solta pelo terreiro, a fuçar, a esburacar e a se sujarem de lama num brejo existente para além da cerca.

Como os jenipapos estivessem maduros, sempre que uma ventania sacudia os galhos da árvore caia algum ao chão. E era se ver a correria dos porcos, entre grunhidos, embolados, se amontoando todos em busca da fruta.

Eu, grande apreciador duma bebida feita com as casas dos jenipapos, ficava à espreita de oportunidade. Mas os suínos eram sempre os primeiros:- um barulho, o ruído surdo do jenipapo caindo na terra fofa e a porcada lá vinha, aos tropeços, escalavrando o chão na correia louca, levantando pequena nuvem de poeira.

Um dia, depois de ter almoçado à farta, fui para o fundo do quintal. Fiquei uma eternidade a observar os porcos, projetando um modo de apanhar o fruto antes deles. Parecia-me difícil, pois estavam sempre alerta. Fuçavam aqui, mexiam ali, juntos, porém quando se ouvia barulho semelhante a alguma coisa que cai ao chão, chispavam em direção ao jenipapeiro. Ainda assim me dispus a roubar-lhes a presa.

Acocorei-me junto ao tanque, assobiando dissimulado, esperando a ventania fatal. Não demorou muito uma brisa fresca chegou ao terreiro, tomou conta das árvores, jogou ao chão algumas peças de roupa dependuradas no varal e ... foi o bastante! Olhei com um sorriso amarelo para o jenipapeiro. Este, como se adivinhasse o meu desejo, farfalhou alguns galhos e ... PÓF ! O fruto caiu.

Arranquei-me de um salto em direção a ele. A porcada também correu, grunhindo aos trambolhões. Quando estava quase a tocar o cobiçado regalo eis que me acontece o imprevisto:- um tropicão formidável atirou-me mais para a frente! Saí raspando a cara na terra mas ainda peguei a fruta. Para infelicidade minha, pois os porcos já estavam em cima de mim, a fuçar, pisando-me e lambuzando-me de barro. Porém agarrei firme o jenipapo e ergui-me, dando cabeçadas e pontapés nos leitões.

Horas depois, já de banho tomado, limpo, cabelo penteado e um bruto galo na testa, estava eu sorridente na escada da cozinha, saboreando o meu delicioso mas custoso refresco.

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AS JURITIS

Outro episódio difícil de esquecer foi o da caça à juriti. Havia, do outro lado do brejo existente por detrás dos terrenos da minha tia Amélia, um capão de mato onde se notava uma variedade impressionante de pássaros. Às tardinhas, quando o sol principiava a descambar no poente, começavam eles a chegar em bandos alvoroçados, sussurrando asas em burburinhos alegres, para se recolherem ao capão.

Atraído pela cena de todas as tardes, notando que passavam por cima do terreiro lá de casa em vôo direto pro capão, passei a melhor observá-los. Vi então pombas-rolas, sabiás, maritacas, sanhaços e até juritis. Armei uma arapuca e coloquei-a num pequeno claro, debaixo de um pau-de-macaco, lugar preferido e muito freqüentado pelas juritis. Meu maior desejo era apanhar uma viva, acariciá-la, sentí-la de encontro ao meu peito, tocá-la com meus dedos, pois eu amava os pássaros.

Foi pois com imenso cuidado que transportei o engenho pro lugar escolhido. Armei-o, semeando um punhado de milho por dentro e por fora, bem defronte à entrada fatal. O pássaro chegava, comia o milho de fora, via o de dentro, não resistia e ... Assim calculei.

Pela tardinha, jantei, arranjei uma desculpa esfarrapada com minha tia Amélia e voei para o capão de mato. Instalei-me mais cedo que as juritis. Ainda não haviam chegado. Com relutante paciência, ajeitei-me por detrás de um pequeno arbusto e cravei os olhos na armadilha. O tempo passou lentamente. Eu já estava quase a gritar de desespero, com os impertinentes mosquitos borrachudos a me espicaçarem as pernas quando ... um barulho de asas se fez ouvir. Um banco de maritacas em louca algazarra passou num vôo rasante por cima da minha cabeça, indo alcançar uma barriguda saliente lá na extremidade do capão.

Ainda não eram as juritis. Porém, quem espera sempre alcança. E assim foi:- um casal delas chegou, para minha alegria. Pousou justamente no pau-de-macaco, como eu havia previsto. Notaram as juritis algo de diferente no panorama ordinário de todas as tardes:- a arapuca e os milhos, mostrando-se de maneira tentadora e convidativa. Claridade pálida no crepúsculo daquele momento vespertino.

Começou então a minha agonia. Escondido atrás do arbusto, com a respiração ofegante, suplicava com os olhos às juritis pra que descessem. E não demorou muito ... desceram! Voou o macho e logo depois a fêmea. Fiquei num estado de puro êxtase, rezando baixinho para que uma das duas entrasse. O macho foi se aproximando, desconfiado; parou a alguns metros da armadilha, examinou tudo em volta, o pescoçinho gracioso torcendo-se nervosamente. Caminhou mais um pouco e pôs-se a comer o milho do chão. Uma maritaca retardatária me provocou a retirada de alguns fios de cabelo da cabeça, pois, com o seu matraquear característico, as espantou. Voaram pro alto do pau-de-macaco.

Mas o estopim já estava aceso. O regalo lá embaixo tentava-as, convidando para um banquete. Assim, passado o susto, desceram novamente. O macho, já desta feita, correu sem cerimônias para a boca da arapuca. Parou, olhou pra trás, interrogou a companheira e ... não hesitou mais:- encafuou-se na arapuca! O artifício desarmou com um leve ruído. A bichinha espantou-se, debatendo-se nervosa dentro dela, mas era tarde demais. Eu, que seguia embasbacado todo o lance, não me contive mais e precipitei-me para a arapuca.

A fêmea, coitadinha, vendo o macho prisioneiro, apavorou-se e sumiu dali. Aproximei-me. Era todo sorrisos. Acocorei-me devagar junto à armadilha, levantei-a cuidadosamente e, não resistindo mais ao grande momento, cai por cima da arapuca, agarrando, amassando a pobrezinha da juriti. A ave debateu-se numa súplica desesperada. Penas voaram, arranhou-me o rosto com suas unhas afiadas e ... soltou-se!

Soltou-se, para tristeza minha que, soluçante, com um punhado de penas na mão, os olhos lacrimosos, a boca entreaberta num arremedo de choro, fiquei mudo a mirá-la, elevando-se nos ares à procura da sua companheira ...

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O RIACHO

Lembro-me dele ainda. Suas águas claras, borbulhantes, deixando-se ver o seu fundo, atapetado de cristalina e muito branca areia, correndo sinuoso pelos campos que conduziam à saída do Mocambo.

Era o meu local favorito. Quando, depois de insistentes pedidos, minha tia Amélia permitia que eu fosse me banhar em suas águas puras, um oxigênio de satisfação se exalava por todos os meus poros. Saía a correr desabalado estradinha afora e, com um largo sorriso na cara suja de manga, chegava ao meu ponto costumeiro:- longe da estrada uns trinta metros, numa de suas curvas, à sombra de frondosa gameleira.

Chegava espavorido, plenamente feliz, tirava a camisa, as calças, subia numa das possantes raízes da gameleira, infiltrando-se pelo riacho e ... tchbum! ...

O local era raso, a água dava-me no peito. Como um sujeito faminto diante de um suculento petisco, eu nadava até num trecho onde ele fazia uma curva brusca, havendo ali uma miniatura de praia. Aí então deitava-me na areia fofa, deixava-me tostar pelo sol abrasador e, logo depois, atirava-me novamente à água.

Chegando à gameleira, sentava-me ofegante sob a sua sombra amiga, ficava minutos seguidos a ouvir o zumbido das cigarras naquele bucolismo do meio-dia, os respingos de água fria escorrendo pelo meu corpo e a deliciar-me com migalhas de folhas da arvore que caíam na minha cabeça, espicaçadas por silenciosos periquitos no alto da gameleira.”

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E assim era que, em noites chuvosas, corríamos todos para a cama dos nossos pais, embolados, nove pimpolhos irrequietos, estremecendo-se e aconchegando-se a eles ao ribombar dos trovões. Só para ouvir o Velho Rêgo a contar sua historia, a historia dos seus tempos de menino.

Ouvindo-o, chegávamos a esquecer a chuva caindo lá fora, o trovão barulhento sacudindo a noite escura, o vento gelado assobiando nos fios de luz, na rua. O caçula perguntava:-

“- Pai, o galo na testa cantou de noite?”

E era a vez do Zé Afonso, de dez anos buliçosos, que, com os olhinhos miúdos brilhando desdenhosos, os beiços entreabertos num sorriso zombeteiro, pulava rápido para o assoalho, o corpinho balançando-se esperto e dizia:-

“- Que nada, Tininho. O porco é que amassou o focinho, bobo! ...”

Risos enchiam o quarto. O maroto virava-se lépido para a porta, procurando escapar do chinelo certeiro que voava em sua direção.

Dizia, então, meu pai que desejaria voltar ao sítio do Mocambo e encontrar, como dantes, os jenipapos, os porcos, as juritis, o capão, o riacho, os periquitos e a gameleira, relíquias do seu tempo de menino.

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RobertoRego
Enviado por RobertoRego em 19/09/2009
Código do texto: T1819290
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