SOLIDÃO DE VACAS


Mariana acabara de achegar-se à varanda e deparara-se com um velho e conhecido forasteiro uma vez mais apossando-se de suas terras.As mechas de ocre e vermelho tingidas entre o que ainda restava do verde,denunciavam a invasão do outono.
Meados de maio e a aragem quase fria já requeria o uso de algum agasalho mais pesado.Sente um arrepio pelo corpo,cruza os braços e os aconchega junto ao peito.Aspira o ar que tem um cheiro de feno,de folhas secas...Os longos cabelos agora também invadidos de alguns fios brancos,esvoaçam,encobrem-lhe os olhos;ela os ajeita,calmamente,e aquela paisagem abre-se em seu campo de visão como generoso presente do Criador.
As terras que lhe pertencem,a paz daquela natureza exuberante,a liberdade de poder administrar com alma tudo aquilo que é seu.
Sente-se agradecida pela coragem e força que Deus lhe concedera desde que ficara viúva.Não foi nada fácil tomar as rédeas no comando dos negócios;isso era tarefa de seu finado marido,mas alguém teria de prosseguir e o tempo lhe foi ajudando. Hoje tinha convicção de que fazia as coisas corretamente.
Aquelas terras tão longínquas tornavam-lhe muito só e quando tomou a decisão de ceder parte delas
à seus agregados experimentou no aconchego dos vizinhos,um pouco de calor humano a lhe confortar o coração solitário.Estava sozinha uma vez mais.Na pequena vila dos agregados um silêncio passeava entre as casinholas coloridas.As pequenas janelas de madeira em cores berrantes estavam cerradas.Apenas dois vira-latas brincavam,corriam,rolavam-se mordendo um ao outro em frente à casa do velho Antero,onde avistava-se no topo do mastro a bandeirola com a imagem de São Sebastião erguida na última festa que o capelão realizara.Hoje só retornariam tarde da noite.Aderiram todos à romaria que o ancião promovera em uma cidadezinha não muito distante.Partiram ainda de madrugada num caminhão fretado para o transporte.
Sente-se tomada por um desejo de dialogar .Aflige-lhe uma vontade de expor os sentimentos mais íntimos,falar de sonhos que ainda acalenta,de saudades que sente...Vem-lhe à memória a imagem de Raimundo,seu finado marido,e este lampejo de lembrança reafirma-lhe a solitária que sempre foi,mesmo durante o convívio com o esposo.Raimundo era um sujeito calado,introspectivo,ríspido nas respostas.Muito diferente de quando encontrava-se com os companheiros no povoado e juntos galanteavam filhas de lavradores, e embriagados gargalhavam de anedotas grotescas.Era uma tarde também de outono,num domingo com ares parecidos aos que agora experimentava.O mesmo desejo de trocar idéias,compartilhar sentimentos,tivera-lhe acometido.Raimundo estava na varanda,acocorado,pitava um palheiro.Um olhar fixo num ponto qualquer, pensamento longe,muito longe...Mariana resoluta,abre o diálogo:
_Rai!...Ao que parece nêste ano teremos um inverno rigoroso.
Raimundo demora alguns segundos e responde-lhe:
_Pois que venha!...Lenha temos de sobra.
Mais uma baforada no palheiro e novamente os olhos perdem-se num ponto que só o seu pensamento conhecia.
Sem graça Mariana recolhe-se ao seu silêncio.Percorre o corredor e antes de chegar à cozinha ouve o tropel de um cavalo.Chega a tempo de observar Raimundo cruzando a estradinha que leva ao povoado.
Agora,resignando-se à solitária que sempre foi,alegra-se com o que tem,mas dera-se conta de que nada,absolutamente,mudara em sua vida.
Hoje,neste final de domingo,sem ninguém por perto,restam-lhe as divagações.A janela que abre-se para o quintal lhe induz a velhos outonos.Os mesmos caquizeiros de frutos vermelhados...Em outros tempos sob as ramagens,Natalia,Maria e Celeste brincavam de casinhas.Tijolos sobrepostos transformavam-se em armários e latas vazias de conservas,agora cheias de terra,eram panelinhas com mingaus para as bonecas.Carlinhos rodava pião,tocava gaitinha de boca e cavalgava pelo potreiro um alazão imaginário num cabo de vassoura.Todos crescidos!...cada um tomara o seu rumo;casaram-se,deram-lhe netos queridos,mas a distância torna raros os encontros de familia.Agora , debaixo dos caquizeiros, apenas galinhas ciscando o bronze das folhagem dispersa pelo vento.
Afaga um antigo album de fotografias...É uma mulher forte e corajosa,mas a saudade lhe rompe as barreiras e os olhos umedecidos embassam-lhe as imagens.
O arpejo do vento ecoa uma canção melancólica.As araucárias se contorcem,chiam,parecem compadecidas daquele rosto abandonado entre o retângulo da janela e num pranto de arvoredo vertem lágrimas de grimpas sobre os arbustos menores.
No curral berram os terneiros...Respondem-lhes doloridas as mães dispersas no mangueirão.Os ecos lhe chegam aos ouvidos na forma de lamentos.Algo feito uma cobrança do distanciamento,da separação;a força instintiva da proteção à cria,uma espécie de solidão,porque não...Angustiada , dirige-se à porteira.Abre-a e "Mimosa",impaciente,é a primeira a entrar.O restante do bando vem logo atrás;apressado,ofegante,ansioso...Cruzam em disparada.
No estábulo,cessa o berreiro.Mariana enxuga os olhos,observa o céu que se debruça por trás das montanhas e um pensamento lhe vem à cabeça.Uma estranha analogia que lhe impede de controlar-se...Então,após um longo suspiro,desabafa:
_"Ahhh!!!...Esta nossa solidão de vacas!..."