A toalha milagrosa
Conheci Marcelo dez anos atrás quando viajava de ônibus para o Mato Grosso. Na verdade foi na rodoviária de Blumenau, em Santa Catarina.
Estava apressado e não notei no pé estirado no meu caminho quando voltava do guichê das passagens.
Quando notei já estava no chão em meio as minhas coisas que escapuliram da mochila que se abrira na queda.
--- Poxa, me desculpe seu moço! Eu cochilei um pouco! Me desculpe mesmo!- notei preocupação em sua voz.- O senhor está bem?
Eu levantei-me pronto para lhe passar uma descompostura, mas olhando melhor não criei coragem. Arrumei minhas coisas e fechei a mochila novamente.
Em minha frente estava um rapaz estava pálido e esquálido. Seus olhos estavam fundos e havia enormes olheiras no rosto cansado e amarelo.
--- Estou bem! Mas... e você? Tudo bem?
--- Estou bem sim! Me desculpe pelo acontecido! Eu cochilei um pouco!
Ele apenas repetiu o que já havia dito anteriormente.
Olhei para meu relógio e vi que apesar da minha pressa ainda havia quase uma hora para a saída do meu ônibus.
---- Eu...- ele devia estar com fome. Havia um saco de roupas em cima do banco. - Escuta vou tomar um cafezinho, quer vir comigo?- suas roupas estava bem amarrotadas e não duvidei que devia dormir no chão, em algum lugar ali por perto.
Ele olhou para mim com um olhar desconfiado. Na verdade na época não sabia mas depois ele me diria que tinha vergonha de pedir algo a um desconhecido.
--- Um café?! Hã, que tal? - como ele não falasse nada, insisti - Hei, rapaz, estou lhe convidando para um lanche!
--- O senhor me desculpe, mas não precisa não senhor! Estou esperando uma carona para Florianópolis! Para onde vai o senhor?
--- Vou pegar um ônibus até Campo Grande! Conhece lá? - eu olhava de lado. Eu estava pouco a vontade naquela situação e queria sair dali o mais rápido possível, no entanto algo me segurava. Algo mais forte do que a minha vontade de sair dali rapidamente antes que os outros ocupantes do ônibus em que viajava me percebessem ao lado do rapaz maltrapilho.
--- Conheço não senhor! É longe? - nisso ouvi o estômago do rapaz roncar de fome.
Ele se ajeitou no banco, querendo disfarçar o "ronc" que protumberou ao nosso redor. Virou a cabeça de lado para eu não ver seu rosto.
Levantei-me e sai em direção a lanchonete da rodoviária.
Cinco minutos depois eu voltei até o banco mas o rapaz já havia desaparecido. Depois de discutir com a moça da lanchonete para devolver os salgadinhos que havia comprado eu os dei a duas crianças que estavam com caixa de engraxate nas costas.
Minha viagem foi muito boa. Fiquei duas semanas com meus parentes mato-grossenses. Tudo correu tudo bem e na volta parei novamente na rodoviária de Blumenau.
Era de madrugada quando o ônibus estacionou.
Ao passar para ir até a lanchonete reparei naquele banco vazio, onde dias antes encontrara aquele rapaz em situação desesperadora e que por orgulho não aceitara minha ajuda.
Cinco anos se passaram. Minha vida corria o rumo normal.
Eu resolvi fazer um curso de línguas. Russo foi o idioma escolhido.
O professor era um rapaz magro, trinta e poucos anos, dizia que viera da Turquia, mas que vivera dez anos na Rússia, na região onde agora havia vários movimentos rebeldes de guerrilha. Eu achava engraçado o sotaque dele, e ao mesmo tempo imaginava que bem poderia ser um espião trabalhando disfarçado no Brasil. Lembrava dos livros de Forsyth onde ninguém era o que parecia ser.
O curso era ministrado no apartamento onde o Professor dividia moradia com sua Sogra e esposa. Ás vezes eu os ouvia falando em árabe ou mesmo russo e eu não entendendo nada, me limitava a ouvi-los em silêncio, sorrindo. O apartamento ficava no centro da cidade e tinha que pegar dois ônibus para ir até lá.
Um dia voltando para casa de lotação um caso curioso e estranho me chamou a atenção dentro do mesmo.
Uma mulher no banco a minha frente tinha uma criança pequena no colo.
Volta e meia a mulher balançava a criança que parecia estar passando mal.
Não estávamos nem no meio do percurso quando então a criança soltou um jorro branco e aguado no corredor do lotação. Alguns pingos vieram cair em cima do meu sapato. Sorte minha que a mochila com os livros do curso estava em meu colo.
Com gestos de desculpas e toda sem jeito a mulher tentava se limpar e limpar a criança com um pequeno lenço que trazia junto. No entanto suas tentativas resultavam em fracasso. Enojada, e com ares de pouca simpatia pelo que acontecera, a mulher ao lado no banco da que tinha a criança com vômitos, levantou-se e saiu pisando no leite esbranquiçado no corredor.
--- Credo! Que nojeira! - resmungou.
--- Me desculpe! É criança, né! Isso acontece! - disse a mãe corando e ficando de cabeça baixa, tentando ainda se limpar, mas o pequeno lenço não consegui efetuar um bom serviço.
Nisso uma senhora já de idade tirou um pano meio amarelado pelo tempo de uma bolsa e o entregou para a mãe da criança indisposta.
--- Tome minha senhora! Faça bom uso.
--- Obrigado! Muito obrigado! - disse ela limpando suas roupas e o rosto da criança.
Depois de feita a limpeza não sabia o que fazer com o pano que a outra lhe passara.
--- Fique com ele! Esse pano tem um linda história e não deve jamais ser devolvido! - disse a senhora de cabelos brancos e gestos educados.
A moça, sim porque a mãe da criança ainda era uma jovem, enrolou o pano de um jeito que a parte molhada pelo vômito ficou escondida pela parte limpa e colocou dentro de sua pequena bolsa.
--- Obrigada! Mas... vou lavar e depois? Como faço para lhe devolver? Não posso ficar com ele.
---- Meu nome é Antonia. Antonia Mildgar, e o seu? - disse estendendo a mão. Este gesto fez com que seu braço se esticasse e as mangas do vestido bonito que usava recuaram um pouco e eu vi umas marcas rochas no braço esticado.
--- Oh, desculpe-me, me chamo Adelaide de Mariano. - Esticou sua mão e apertou a mão da velha senhora. - O que disse antes, sobre não devolver a toalha? Que história é essa?
Apesar do cheiro nauseabundo do vômito eu resolvi permanecer ouvindo o que diziam as duas mulheres.
---- Eu recebi esse pano durante um vôo de avião. Eu estava viajando para a Itália e como não tinha costume passei mal. Então uma senhora me ajudou. Como eu fiz agora! Ela me passou esse pedaço de pano e quando eu quis devólve-lo ela não o aceitou e me contou sua história.
Eu permaneci atento a história que se desenrolava.
--- Segundo ela, um dia uma moça teve um desmaio na rua. Ela estava com vinte anos na época. Era jovem e gostava de viajar com o dinheiro de seu pai. Estava em Israel fazendo um tour com um grupo de europeus. Estavam fazendo o caminho das pedras que Cristo havia feito, quando sem perceber ela pegou um caminho errado. Ficou perdida do grupo durante meio dia e chegou então ao seu extremo. Desmaiou de exaustão de tanto caminhar por entre aquelas ruelas e becos na tentativa de encontrar sua turma. Um jovem judeu a ajudou. Achou-a desacordada e a levou até sua casa. Lá ele a tratou e quando ela começou a botar sangue pelo nariz, ele lhe passou um pedaço de pano para limpar-se. O sangue parou de brotar no mesmo instante. Ele negou-se a pegar novamente o pano e ela acabou por guardar o pano como lembrança. Daquele dia em diante a moça nunca mais botou sangue pelo nariz. Sua vida teve uma mudança significativa dali pra frente e ela então guardou o pano como se fosse uma relíquia. No entanto depois de dois anos ela voltou a Jerusalém e lá encontrou-se novamente com o jovem que a ajudara. Este lhe disse que deveria se desfazer do pano depois de cinco anos, pois essa era a tradição. A toalha não podia ficar sem atividade. A finalidade da existência da toalha era ajudar a quem dela precisasse, mas não deveria passar mais de cinco anos com uma pessoa, caso contrário muitas desgraças poderiam advir. A moça não acreditou naquilo e depois de seis anos com a toalha seu pai veio a falecer, em seguida a firma do mesmo pediu falência. Ela não sabia o que fazer, o rapaz disse que simplesmente se desfazer da toalha não resolveria. Ela fora feita para servir, ajudar. Então na primeira oportunidade que teve a moça ajudou alguém com a toalha e se desfez dela. Novamente sua vida pegou rumo bom.
--- Nossa! Será que é verdade?
--- Posso lhe dizer por mim! Consegui um bom marido para minha filha desde que estou com este pano e uma certa estabilidade financeira para mim. E como faltam dois meses para os cinco anos...
--- Sei.. poxa... obrigado! Pelo pano e .. pela história.. e quanto a senhora do avião, o que a toalha fez por ela?
Eu desci logo em seguida e não pude seguir o rumo da conversa.
O que isso tem a ver com Marcelo?
Calma, eu explico.
Passaram-se mais tres anos. Eu já estava falando um pouco de russo e também conseguia entender algo da conversa entre meu professor e sua esposa. Além do Russo também aprendera algo de árabe.
Meu serviço ás vezes exigia que eu viajasse de avião e outras eu ia de boa vontade pelas rodovias. Claro que tudo pago pela empresa, afinal nem automóvel eu possuía.
Avião é bom por que é rápido e mais aconchegante. Mais comodidade. No entanto, criado ao ar livre, solto pelos campos eu gostava mesmo é de viajar de ônibus. Não me importava de ficar horas com as pernas presas, sem poder esticá-las. No entanto devido a um problema de coluna, o avião acabou por tornar-se a saída mais viável, apesar de ser também descontada uma percentagem do gasto do meu salário.
Numas dessas viagens tive uma surpresa.
Um rapaz magro e bem apessoada sentou-se na poltrona do outro lado do corredor. Eu o olhei de soslaio, pois nunca gostei de encarar as pessoas, no entanto algo me chamou a atenção. Não sei bem explicar o porquê mas o fato é que fiquei procurando uma desculpa para poder me virar e ver o rosto do rapaz.
Aqueles olhos negros no rosto bem barbado não me eram estranhos. Aonde os tinha visto? O nariz fino e alongado, o queijo duro e fino. Eu já tinha visto aquele rapaz em algum lugar no entanto não sabia de onde.
Ví que ele estava bem vestido. Terno e gravata, sapatos impecavelmente lustrados, cabelos curtos e bem penteados. Mas o rosto é que me chamava atenção. Da onde o conhecia?
Não surgia uma oportunidade de puxar conversa e a moça ao meu lado toda hora ficava falando sobre política.
--- Viu a sujeira lá no planalto? Dessa vez aquele deputado não vai escapar.... acho que só a CPI não vai resolver...
Ela falava, falava. Parecia um gravador. Aquilo me enchia. Não queria lhe dar as costas mas era o que merecia.
Por um tempo esqueci do rapaz e procurei dar alguma atenção a moça. Afinal não queria parecer ser mal educado.
Quando trouxeram o lanche surgiu a oportunidade que eu esperava. A viagem era até Picos, no Piauí, com escala em São Paulo.
Foi ele quem comentou em voz alta e clara.
---- E pensar que muitos renegam esse lanche! -
Eu olhei de lado e notei que era comigo que ele falava. A moça ao seu lado dormia e seu cabelo comprido caia sobre o rosto.
Pouco antes eu os ouvira conversar em tom baixo. Pareciam um casal de enamorados.
--- É verdade! Eu geralmente não gosto de comida de avião, nem da de hospital! - disse sorrindo.
Ele sorriu também. Dentes brancos e perfeitos.
--- O amigo vai até onde? - perguntei tentando não parecer curiosos.
--- Vou só até Recife! Negócios! Quer dizer, eu a negócios, ela vai passear.
Nesse momento a mulher ao lado dele remexeu-se.
--- Sou Jair Gomes, escritor! - disse estendendo a mão. Jamais iria dizer que era Vendedor de uma Companhia de Informática.
--- Marcelo Da Silva, corretor de imóveis!- Quando ele me olhou de frente então eu o reconheci. Estava mais arrumado, mais cheio de vida, mas era o mesmo rapaz com quem eu esbarrara na rodoviária de Blumenau. Seus gestos, sua voz, tudo parecia Ter mudado nele. Apenas sua educação e meiguice pareciam as mesmas.
---- Hei, espere ai! - disse a ele - Você?! Eu conheço você!!
Ele pareceu um pouco espantado com essa declaração, então soltou um sorriso.
--- Ah, reconheceu né! Eu o reconheci logo que sentei! Queria ver se o senhor me reconheceria! -
Com a nossa conversa a mulher ao lado dele virou-se.
Ficamos em silêncio por um momento.
A moça ao meu lado colocou um fone no ouvido e parecia também estar dormindo. Pelo menos calara a matraca.
--- Minha esposa! É entrar no avião e já está dormindo.
Eu sorri. Estava encantado com tudo aquilo. Como ele mudara tanto? A oito anos atrás ele era um rapaz sem eira nem beira, um vagabundo. Só tinha um saco de roupas na mão. Eu não via perspectiva nenhuma em seu futuro. Jamais poderia imaginar que o encontraria novamente e ainda mais dentro de um avião. Na verdade quando o deixara na rodoviária até pensara nele. Pensara que não demoraria muito e ele estaria assaltando alguém, roubando para poder viver. Que bela surpresa!
--- Mas que aconteceu com você?
--- Pois é! Aquele dia o senhor saiu correndo como se eu fosse algum ladrão. Não o culpo por isso. Eu realmente estava mal.
--- Não! Eu não saí correndo! Fui comprar uns ... ah, deixa pra lá! Mas que mudança hein?
--- Não virei bandido não! Nem traficante! Na verdade assim que o senhor virou as costas eu fui pro outro lado da rodoviária e lá logo consegui uma carona com um caminhoneiro. Lembra que lá tinha um posto? Pois é, rumei pra Florianópolis com o caminhoneiro. Eu estava tão cansado que ele me deixou ir dormindo na parte atrás dos bancos. Em dado momento no meio da rua eu acordei com o barulho de vozes. Assustado pelo tom das vozes eu espiei com cuidado. Dois homens estavam assaltando o pobre do motorista. Eles o tinham feito descer do caminhão e o ameaçavam com uma arma. Pensei rápido. Olhei no porta luvas e vi que tinha um revólver. Eu nunca tinha atirado antes, mas tinha que fazer alguma coisa. Então peguei na arma e gritei o mais alto que pude e atirei para o alto. O tiro furou a lataria do teto da cabina do caminhão . Os homens se assustaram, provavelmente pensaram que o motorista estava sozinho, e começaram a disparar na direção do caminhão. Enquanto nós trocávamos tiros o motorista do caminhão conseguiu fugir deles e voltou para dentro do caminhão. Com mais prática que eu ele atirou na perna de um dos bandidos e acelerou o caminhão. O carro que eles tinham usado para parar o caminhão, atravessando-o na estrada, foi jogado para um barranco. O outro bandido ficou gritando nomes e nós se mandamos embora.
--- Puxa! Mas...
--- tem mais! O Seu João, não era o motorista. Era o dono. Não só daquele caminhão mas sim o dono de uma transportadora. Tinha uma frota de quase vinte caminhões. Consegui serviço com ele.
--- Sorte grande hein!
---- Um pouco de sorte não faz mal a ninguém! Mas o melhor está por vir, quando perguntou aonde eu morava falei que não tinha aonde ficar então ele me disse que tinha um quarto vago em sua casa. Um ex-motorista morava lá mas casara-se e foi embora deixando o quarto vazio.
Eu ouvia calado. Ele falava com jovialidade e alegria. E eu ficava encantado em ver como o Destino sorri de tal forma para algumas pessoas.
---- Mas.. o melhor mesmo... o melhor é isso aqui! - disse ele mostrando com o indicador sobre o ombro a mulher ao lado. - Ela é filha do seu João. Depois que me casei fomos morar longe do pai dela. No início não aceitaram bem. Tive que batalhar até arrumar um emprego melhor.
Nisso a mulher se vira passando as mãos sobre os olhos e ajeitando o cabelo.
Era a mulher que eu vira com a criança no colo aquela noite dentro do lotação.
--- Passamos alguma dificuldade juntos, mas a uns dois anos atrás as coisas começaram a melhorar! Estou com um bom emprego e graças a Deus com Duas lindas filhas. Financeiramente falando vivo bem e tenho de tudo que poderia querer. Sou muito feliz! - disse ele beijando a testa da sonolenta mulher.
Me tornei amigo de Marcelo e já passei muitos finais de semanas com ele e sua família na beira da piscina de sua casa ou mesmo no sitio.
Em um armário vidrado existe uma pequena caixa de madeira, dentro há apenas uma pedaço de pano como simbologia. Afinal a verdadeira toalha milagrosa já está com outra pessoa.