O universo do Sr. Krause II

O UNIVERSO DO SR. KRAUSE II

Julho/2009.

Newton Schner Jr.

Fazia sol e eu caminhava com minha mala debaixo do braço. Nela havia um pouco de dinheiro – creio que dezesseis reais em papel e mais alguma outra quantia em moedas – um livro de Schopenhauer, um lápis, uma caneta, alguns documentos e um velho bloco de notas. Percebendo que dispunha de tempo e que o dia estava agradável, resolvi visitar meu amigo Arthur Krause.

Dias antes, ao entardecer, eu havia passado em frente à sua casa, mas não o encontrei. Havia dois homens bem próximos dali. Um logo me dirigiu a palavra: "Você procura o velho? Ele não se encontra. Saiu às compras!" e tão logo aquele que se encontrava ao seu lado disse: "Você toca guitarra?", "Não... Toco piano", disse-lhe com surpresa em relação à pergunta que me fora feita. "Pois é... Eu, quando o vi dobrando a quadra, logo pensei que você tinha envolvimento com música". E nos pusemos a conversar. Em dado momento, disse-lhes: "Deixe-me com que me aproxime, pois não consigo ouvi-los. Dias atrás fui à praia e resolvi mergulhar na água gelada. Hoje estou com sérios problemas de ouvido".

* * *

Bati palmas, mas não houve resposta. Resolvi, então, pela primeira vez, abrir aquele portão branco e tocar a campainha que existia ao lado da porta. Dona Maria apareceu. Sorri-lhe, mas ela, a uma distância de quatro ou cinco metros, pareceu não me reconhecer nos primeiros instantes. Veio em minha direção para finalmente perceber quem eu era.

"Ah, é você!", "Eu passei aqui para ver como tudo está indo. Eu estive aqui dias atrás, mas dois homens que estavam ao lado disseram que o Sr. Krause não estava", "Isso é mentira! Nós sempre estamos em casa. Ah, esse pessoal adora inventar coisas. O Arthur está em casa quase sempre. Só ontem que ele saiu, porque foi arrumar o armário da sua irmã Emma. Agora ele nem sai para fazer compras porque além de estar frio, o seu carro estragou". E me convidando para entrar, foi logo dizendo para que eu, em uma próxima ocasião, tomasse liberdade para abrir a porta da garagem. "Você é de casa, então pode entrar. Normalmente o Arthur fica no paiol dele, consertando e inventando coisas. E eu fico na parte de trás de casa. Então quase não escutamos a campainha".

Adentrei e passei pela garagem fria e escura, onde estava estacionado o Corcel amarelo, sem o pneu direito da parte de trás. Avancei e fui à direção ao paiol, onde o Sr. Krause estava. Cumprimentamo-nos com felicidade. Em pé ele estava e parecia fabricar uma peça. "Oi, amigo!", disse, "eu estava pensando em você esses dias. Você nunca mais apareceu. Pensei: 'Deve ter se casado ou então vendeu a casa e se mudou', pois passei na sua casa umas duas vezes, mas não o encontrei", "Que estranho, pois sempre estou lá", "Eu vi que estava tudo fechado, então achei que você nem morasse mais nela. Isso faz um mês ou mais". Apontando para as paredes daquele paiol, disse-lhe: "Então é aqui que o senhor passa boa parte do tempo?", "Ah, sim. Só quando está frio que não. Andou chovendo muito nesses últimos dias e eu resolvi ficar dentro de casa. Chegava cinco horas da manhã e eu já tomava um banho e não saía mais. Tocava acordeão para me esquentar".

Prosseguiu, com dedos calejados de trabalho, tortos em algumas partes, por causa da música – isso segundo suas próprias palavras. Dizia ele que estava trabalhando em uma peça para o carro. "Eu estou fazendo essa peça. Se é com um mecânico, já iria me cobrar 80 reais. Eu não vou pagar esse tanto, se sei fazê-la!". Eu a vi. Era uma peça cheia de molas que posteriormente se encaixou no carro com uma precisão invejável. "Talvez ainda hoje eu saia com o carro. Ele está muito bom. Querem comprá-lo, mas eu disse que não o vendo. Chegaram a me oferecer 20.000 Reais, mas eu não quero. Já estou com ele há muito tempo e não quero me desfazer. Eu também não posso sair andando e se fosse usar uma bicicleta, seria muito perigoso. Então continuo com ele. Renovei minha carteira e ainda me deram mais dois anos de uso!".

Fomos à cozinha e sentamo-nos próximo do fogão para conversarmos. Em dado momento, contou-me sobre a morte do seu irmão, Alfred. Pouco antes Dona Maria veio ao meu encontro: "Eu acabei de falar com a filha e ela me explicou direito. Disse que você veio aqui na quinta-feira... Sim, na quinta nós havíamos saído mesmo.". Prosseguiu o Sr. Krause: "Eu achei que havia lhe dito sobre a morte dele. Faz um ano já. Ele morreu na água. Todo mundo estava em volta do rio chupando chimarrão e então ele perguntou para a sobrinha: 'Quer ver como mergulho? ', pulou e não voltou mais. Os outros pularam na água e o ajudaram. Ele chegou a ficar um mês na U.T.I., mas não resistiu. Quando eu o visitei lá, ele já não conversava – iria morrer mesmo. Engraçado é que ele nadava bem. Desde pequeno gostava de água", "Nossa, que pena! Mas ele estava bebendo e resolveu mergulhar?", "Não, ele não bebia nada de álcool. Todo mundo estava se divertindo, chupando chimarrão na beira do rio e ele então mergulhou e não voltou. O estranho é que depois os que estavam com ele pularam na água e não encontraram nenhuma pedra ou qualquer outra coisa onde ele pudesse ter batido a cabeça. Gostava tanto da água que morreu nela".

Por um instante, quase caí em gargalhadas quando ele, complementando o que dissera, afirmou que seu irmão "ainda deixou uma Belina e um Corcel". Eu não queria parecer um insensível, mas foi muito engraçado vê-lo dizer, com um olhar melancólico, que dentre as preocupações principais após a morte do seu irmão, estavam aqueles dois carros. De súbito, como que improvisando uma brincadeira para rir um pouco, disse: "Ah, então é tradição da família Krause ter um Corcel!".

Conversamos sobre música: "Eu", disse ele, "tenho tocado bastante. Nesse frio que tem feito, toco para me esquentar. Esses dias atrás mesmo eu fiz isso".

Fomos então para a sua sala e começamos a conversar sobre curas. Disse-me ele que todos os sábados um médico, no distrito de Guaragi, cura pessoas apenas com o pensamento: "Não é como essas igrejas evangélicas fazem. Ele cura mesmo!". Prosseguiu, falando sobre as caravanas que o visitam nos fins de semana para receber suas bênçãos. "A gente leva uma garrafa de água e ele a abençoa". Fez referência a métodos alternativos de Medicina: "Eu estava com problema de pulmão e ele me receitou leite com canela". O estranho é que ele se referia ao tal doutor como "Dr. Fritz". Quando o perguntei se, no caso, seria o mesmo que eu imaginava, muito famoso e que realizava operações sem o uso de anestesia, ele pôs-se a falar sobre algo que não se encaixava com nossa conversa. Contou sobre seu método para livrar as tábuas do seu paiol dos cupins, passando nelas uma mistura de cimento, cal e óleo queimado. "O gosto é amargo e então os cupins acabam desistindo".

E no silêncio, ele me perguntou se eu não queria vê-lo tocar. Respondi-o que certamente. Ele parecia esperar ansiosamente por um "sim" de minha parte, ou mesmo que eu tomasse a iniciativa de perguntar-lhe: "Teria algum problema se eu o pedisse para tocar?". Levantou-se e foi atrás de sua Todeschini de modelo antigo e cor avermelhada. Exibiu-se tocando músicas apenas com o baixo. Eu apertava os olhos e admirado, contemplava-o a pensar: "Como ele consegue memorizar aqueles botões tão pequenos, tão juntos uns dos outros?". Vê-lo tocar me trazia uma ótima sensação. Inspirava-me a, quem sabe um dia, pensar em começar a tocar acordeão. Eu transcendia, percebendo que seus talentos não se limitavam à carpintaria e mecânica: era acima de tudo um grande músico. Contente, ele contava vantagens sobre a forma com que as pessoas ficavam admiradas com suas técnicas.

E naquele êxtase, da cozinha a Sra. Krause dirigiu-lhe palavras diretas, como se o maltratasse e, por um momento, senti-me incômodo, como um obstáculo. Mas, na verdade, era o seu jeito particular de dirigir-se ao seu marido. "Por que você resolveu tocar agora? Largue isso e venha almoçar! Você", apontando para mim, "venha almoçar também!". Envergonhado, levantei-me apensar que não havia sido minha intenção almoçar com eles, mas de bom coração aceitei o convite. "Sente-se. Você é de casa". E sentado, ouvi-a dizer: "Você não liga, não é mesmo?", apontando para as panelas na mesa, "É tudo comida simples", "Ah, não se preocupe! Está ótimo!". Havia feijão branco, arroz, macarrão e frango, além de salada de repolho. Enquanto eu almoçava, o Sr. Krause tirou o boné e foi ao banheiro. Dirigi-me à Dona Maria: "Engraçado é que o Sr. Krause não tem ficado calvo. Normalmente boa parte dos homens possui tendência para perder cabelo", "Sim, ele inclusive precisa cortá-lo, só que por causa dessas chuvas acabou não indo". Retornando, o Sr. Krause sentou-se à mesa e começou a almoçar. "Ah, eu estou com frio nos pés", disse ele, "vou pegar uma meia", "Não vai! Passou a manhã toda sem e agora quer deixar a mesa? Termine de almoçar primeiro!". Era assim o convívio e eu passava a me acostumar. Contaram-me sobre um filho que trabalha com caminhão. Também falavam a respeito da qualidade de certos açougues. O Sr. Krause falava em alemão nomes do que costumava comprar. "Speck. Sabe o que é?", "Sei sim. Aliás, minha mãe costuma comprar lingüiças nesse açougue que o senhor disse, tanto que ela fala que é possível comê-la crua, sem precisar fritar ou assar", "Olha, quem sabe eu até vi sua mãe por lá, mas não sabia quem era ela". Então subitamente ele me surpreendeu. "Você tem esses aparelhos onde toca música?", "Sim", "Então qualquer dia eu quero levar para você me tocar uma música do Hitler que eu tenho... Disseram-me que é bem triste". Aproveitando a situação, contei-lhe um pouco sobre a história de Horst Wessel, o mártir que foi inspiração da canção “Die Fahne Hoch” que o Sr. Krause cantava na escola quando era pequeno.

E como é vivido esse senhor! Disse que passou um ano morando em uma praia, voltando a cada mês para Ponta Grossa, quando trabalhava para os capuchinhos. "Coloquei quarenta portas de vidro e mais vinte de madeira lá. Eu saía para caçar eles também!".

Agradeci o almoço e me ofereci para lavar a louça, mas a Sra.Krause não aceitou. Fomos para o lado de fora e sentamo-nos ao sol. Começamos a conversar quando ela nos chamou para dentro novamente. "Venham comer uma salada de frutas!". Sua neta, então, apareceu. Cumprimentei-a. Tinha cabelos escuros, olhos claros e um rosto muito característico dos alemães, com aquela espécie de queixo volumoso. Algumas palavras me foram ditas a seu respeito. Casara-se há algum tempo com um rapaz formado em enfermagem, a mesma área sua. Possuem ambos um imóvel próximo da minha casa, mas residem e trabalham atualmente em Jaraguá do Sul - SC.

Ainda conversávamos quando apareceu a filha do Sr. Krause, que pareceu bastante contente ao me notar. Com ela conversei sobre o falecimento do meu pai, sobre imobiliárias e casos de família. "Eu estava dizendo para a Dona Maria que da próxima vez, irei bater a campainha", "Você pode entrar. A garagem sempre fica aberta. Não temos cachorro aqui e como você é de casa, não há do que se preocupar". Voltamos ao sol e ouvi mais algumas histórias do Sr. Krause, até o momento em que precisei partir. Disse-lhe que necessitava ir ao centro da cidade. Despedi-me da neta, da mãe e da filha, desejando boa viagem à primeira.

Fui até o portão conversando com o Sr. Krause. Em dado momento ele disse: "Mas que pena que seu pai faleceu. Eu acabei nem sabendo de nada. Ele gostava de mim, do jeito que eu tocava. Às vezes quando eu precisava me consultar e não tinha dinheiro, ele não me cobrava. Eu sempre o via no mercado com uma menininha loira, fazendo compras. Nós tocávamos muito nos bailes. Eu fazia as partes só no baixo e todo mundo ficava boquiaberto, pensando: 'Onde ele aprendeu a tocar desse jeito? '. Depois o seu pai aparecia dizendo: 'As moças querem sentar no seu colo', mas eu já era casado". "Foi uma pena mesmo", "Mas como é que ele foi cair do banco?", "Ah, ele bebia e acabava perdendo o controle", "Ele gostava de beber, não é? Uma vez eu estava andando de bicicleta – isso há anos – e ele estava caído de bêbado, perto de uma valeta. Eu parei e o ajudei a levantar e achar os óculos que ele havia perdido... Engraçado eu nunca ter visto você lá na casa dele, quando eu me consultava", "Pois é. É que eu ficava mais no quarto naquela época".

Depois de mais alguns minutos de conversa, despedimo-nos com a promessa de que logo voltaríamos a nos falar. E assim que eu pudesse, levá-lo-ia para conhecer minha casa e para ele tocaria minhas composições de piano. Feliz, segui meu caminho.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 17/09/2009
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