Joel acordou com a cabeleira desgrenhada, a boca com o bafo inflamável que ainda lembrava o porre da noite anterior, mas cumpriu o ritual diário. Puxou uma escada dobrável, elevou-se ao alto do armário da cozinha, conferiu a imagem do Preto Velho que mantinha bem escondida, longe dos olhos das visitas inoportunas, acendeu uma vela, esboçou alguns gestos de veneração, salpicou umas poucas palavras de deferência e estava pronto para sair de casa. No entanto, a preguiça era uma adversária poderosa e ele praguejou aos céus por ter que abandonar o conforto macio e protetor da cama.
Sábado, seu dia eleito para a esbórnia, gostava de frequentar um pagode discreto em Marechal Hermes, no subúrbio do Rio, longe da vizinhança enxerida de Quintino, bairro em que morava. Suas tardes de sábado se faziam assim, cantando e se afogando na cerveja, esquecia-se até das visitas prometidas à mãe, internada há anos num asilo do Rio Comprido.
- Que se dane a velha – pensava com a cabeça já possuída pelo álcool.
Ir ao asilo sempre fora uma tortura para ele, a velha matriarca o obrigava a lembrar-se do irmão, seu único irmão, morreu jovem, assassinado em circunstâncias duvidosas, após falecimento do pai. Ele chegou a ser o principal suspeito, acusado de matar para não ter que repartir a quantia em dinheiro que o falecido guardava no criado-mudo na ocasião em que partiu para a eternidade. Foi preso e logo depois solto por falta de provas. Ele negava o crime. Talvez, só o admitisse para si mesmo, quando ficava sozinho em seu claustro.
- Que se dane tudo! – O som do cavaquinho o libertava de todas as culpas.
A visão da pele mulata de Marta confirmava a sua redenção, comentavam que era prostituta e dava expediente num bordel do Centro. Para Joel, Marta era um rio morno onde ele se banhava e despejava todo o seu desejo improdutivo. Ela não amava o homem, mas a generosidade de quem a presenteava com notas graúdas e novas, daquelas que estalam quando emergem dos Caixas Eletrônicos. Trancavam-se num quarto de motel em Cascadura e só saiam quando as luzes da rua começavam a faiscar.
Após a tarde de festim e luxúria, apreciava ir ao Shopping de Madureira, entrava numa loja fina, comprava uma ou duas camisas e roubava gravatas. Estava alerta para a possibilidade de ser flagrado, nesse caso empurraria a culpa do constrangimento para algum funcionário incauto do estabelecimento, usaria a fama de bom cliente para lançar qualquer calúnia. Manter o dedo em riste fazia parte do seu ofício.
Retornava para casa, vestia o terno lustroso, envernizava os cabelos com brilhantina, colocava o seu anel confeccionado em ouro no dedo indicador, acomodava a bíblia em capa de couro debaixo do braço e ganhava as ruas novamente. No caminho, costumava cruzar com um casal de crentes que o cumprimentava com reverência. Ele percebia o olhar de admiração da esposa do fiel e o correspondia com um sorriso molhado em malícia.
Não caminhava muito para avistar o prédio portentoso, quase um monumento de cristal, erguido e rodeado por grandes vitrais e vidraças. Alguns diziam que a construção revelava o barroco do terceiro milênio. Joel encantava-se com a ostentação do mau gosto, queria para si e andava conforme planejara para tomar aquele pequeno império.
Concentrava-se antes de subir no tablado, esquentava a voz, relia o tópico daquela noite e finalmente iniciava a preleção.
- Meus irmãos, aos que visitam este templo pela primeira vez, sou o Pastor Joel e hoje falarei de um assunto que o nosso dia-a-dia nos leva a esquecer. Lembrarei a vocês, irmãos, os dez passos que erguem a fortaleza do nosso espírito e que constroem a vontade de estarmos aqui: os dez mandamentos do Senhor.
Joel levantou um dos braços, enquanto o outro apontava para a platéia, dedo estendido com o anel reluzindo o brilho dourado. Enumerou com vigor cada uma das leis sagradas diante de uma platéia inebriada com a sua fé:
“1º - Amar a Deus sobre todas as coisas;
2º - Não tomar o seu Santo nome em vão;
3º - Guardar os sábados;
4º - Honrar pai e mãe;
5º - Não matar;
6º - Não pecar contra a castidade;
7º - Não furtar;
8º - Não levantar falso testemunho;
9º - Não desejar a mulher do próximo;
10º - Não cobiçar as coisas alheias.”
Terminada a oratória, o auditório explodiu em aplausos, súplicas e cânticos. As cestas do dízimo encheram-se de notas vultosas e frescas, dessas que saem quentes da boca do caixa. Tamanha emoção fez com que ele deixasse brotar uma lágrima que lhe escorreu suave pelo canto do rosto. Era a consagração.
Aleluia!
Sábado, seu dia eleito para a esbórnia, gostava de frequentar um pagode discreto em Marechal Hermes, no subúrbio do Rio, longe da vizinhança enxerida de Quintino, bairro em que morava. Suas tardes de sábado se faziam assim, cantando e se afogando na cerveja, esquecia-se até das visitas prometidas à mãe, internada há anos num asilo do Rio Comprido.
- Que se dane a velha – pensava com a cabeça já possuída pelo álcool.
Ir ao asilo sempre fora uma tortura para ele, a velha matriarca o obrigava a lembrar-se do irmão, seu único irmão, morreu jovem, assassinado em circunstâncias duvidosas, após falecimento do pai. Ele chegou a ser o principal suspeito, acusado de matar para não ter que repartir a quantia em dinheiro que o falecido guardava no criado-mudo na ocasião em que partiu para a eternidade. Foi preso e logo depois solto por falta de provas. Ele negava o crime. Talvez, só o admitisse para si mesmo, quando ficava sozinho em seu claustro.
- Que se dane tudo! – O som do cavaquinho o libertava de todas as culpas.
A visão da pele mulata de Marta confirmava a sua redenção, comentavam que era prostituta e dava expediente num bordel do Centro. Para Joel, Marta era um rio morno onde ele se banhava e despejava todo o seu desejo improdutivo. Ela não amava o homem, mas a generosidade de quem a presenteava com notas graúdas e novas, daquelas que estalam quando emergem dos Caixas Eletrônicos. Trancavam-se num quarto de motel em Cascadura e só saiam quando as luzes da rua começavam a faiscar.
Após a tarde de festim e luxúria, apreciava ir ao Shopping de Madureira, entrava numa loja fina, comprava uma ou duas camisas e roubava gravatas. Estava alerta para a possibilidade de ser flagrado, nesse caso empurraria a culpa do constrangimento para algum funcionário incauto do estabelecimento, usaria a fama de bom cliente para lançar qualquer calúnia. Manter o dedo em riste fazia parte do seu ofício.
Retornava para casa, vestia o terno lustroso, envernizava os cabelos com brilhantina, colocava o seu anel confeccionado em ouro no dedo indicador, acomodava a bíblia em capa de couro debaixo do braço e ganhava as ruas novamente. No caminho, costumava cruzar com um casal de crentes que o cumprimentava com reverência. Ele percebia o olhar de admiração da esposa do fiel e o correspondia com um sorriso molhado em malícia.
Não caminhava muito para avistar o prédio portentoso, quase um monumento de cristal, erguido e rodeado por grandes vitrais e vidraças. Alguns diziam que a construção revelava o barroco do terceiro milênio. Joel encantava-se com a ostentação do mau gosto, queria para si e andava conforme planejara para tomar aquele pequeno império.
Concentrava-se antes de subir no tablado, esquentava a voz, relia o tópico daquela noite e finalmente iniciava a preleção.
- Meus irmãos, aos que visitam este templo pela primeira vez, sou o Pastor Joel e hoje falarei de um assunto que o nosso dia-a-dia nos leva a esquecer. Lembrarei a vocês, irmãos, os dez passos que erguem a fortaleza do nosso espírito e que constroem a vontade de estarmos aqui: os dez mandamentos do Senhor.
Joel levantou um dos braços, enquanto o outro apontava para a platéia, dedo estendido com o anel reluzindo o brilho dourado. Enumerou com vigor cada uma das leis sagradas diante de uma platéia inebriada com a sua fé:
“1º - Amar a Deus sobre todas as coisas;
2º - Não tomar o seu Santo nome em vão;
3º - Guardar os sábados;
4º - Honrar pai e mãe;
5º - Não matar;
6º - Não pecar contra a castidade;
7º - Não furtar;
8º - Não levantar falso testemunho;
9º - Não desejar a mulher do próximo;
10º - Não cobiçar as coisas alheias.”
Terminada a oratória, o auditório explodiu em aplausos, súplicas e cânticos. As cestas do dízimo encheram-se de notas vultosas e frescas, dessas que saem quentes da boca do caixa. Tamanha emoção fez com que ele deixasse brotar uma lágrima que lhe escorreu suave pelo canto do rosto. Era a consagração.
Aleluia!