ÚMIDOS LÁBIOS
O relógio marcava cinco da tarde de sábado quando o maior dos trovões fez tremer as louças sobre o móvel. “Não iremos”, pensava Leonardo. Conforme a chuva apertava, o coração do rapaz apertava junto. Foram tantas semanas de olhares, risinhos, bilhetes, que o rapaz preferiria a morte ao ver aquele passeio se escorrer como as águas que agora lavavam a janela de sua sala.
Foram dias e mais dias de tentativas até que, na tarde anterior, Leonardo abrisse a boca. Com a fala ainda engasgada de tanto medo, convidava Vânia para assistir a uma peça de teatro. A pequena, dona de um sorriso meigo, assim como todas as partes de seu singelo rosto, disse que sim. Ela usava um vestido verde e um tênis da mesma cor, sujo, mas que contrastava logo com a pele limpa que das coxas às canelas se podia notar.
Vânia era uma jovem de apenas dezoito anos, mas que pegara os vinte e cinco de Leonardo pelos pés. Era iniciante no curso de Letras, adorava literatura, não só a brasileira, mas a russa, principalmente. Naquela sexta-feira, carregava consigo um livro de bolso do Dostoievski, mas escondia-o com as mãos para trás do corpo; tinha pavor de parecer uma pseudo-intelectual.
- O que tens aí atrás? – perguntava Leonardo.
- É só um livro – respondia-o mostrando rapidamente o pequeno livro e o retornando para a altura do coaxe.
Até mesmo com aquele gesto inocente e infantil Leonardo vidrava.
Os cabelos bem negros, lisos e curtos de Vânia eram o que mais chamava a atenção do rapaz, já que a cada movimento da menina os fios se comportavam de uma maneira, ora caíam sobre a vista, ora colavam-se sobre os lábios sempre úmidos.
- Bem, então está marcado. Posso lhe pegar amanhã às...?
- Às seis!
- Fechado!
Leonardo ficava parado enquanto Vânia caminhava rumo à sala de aula. Estava ele em meio ao jardim da faculdade onde terminaria, naquele semestre, o curso de Cinema. Uma mente criativa como a dele foi facilmente capaz de imaginar, diante do caminhar de Vânia, mil cenas de amor, nas quais a menina, enlouquecida por uma paixão cega, contracenava com ele, logicamente. A timidez tomava conta de Leonardo apenas externamente; por dentro, o rapaz era desinibido o bastante para causar a sua própria vergonha.
Mas no sábado, todo o sol e o colorido daquele jardim, que se fizera de fundo para o convite de Leonardo, haviam dado lugar a uma chuva que caía como água fria nos planos românticos do rapaz.
Cinco e trinta da tarde. Leonardo resolvia ligar para Vânia a fim de desmarcar o encontro.
- Vânia? É o Leonardo, tudo bom?
- Oi, Leonardo! Que chuva, hein!
- Pois é... Acho que não vai rolar, não é?
- Com essa chuva eu acho meio difícil, mas ainda temos meia hora para São Pedro nos dar uma ajudinha.
Leonardo sorria calado diante do “São Pedro nos dar uma ajudinha”; achava de uma delicadeza tão grande a pequena dizer dessa forma que tinha vontade de beijá-la só por isso.
- Você é uma graça, já te disseram? – perguntava Leonardo.
- E você me parece mais desinibido ao telefone, não?
- Um pouco.
O papo dos dois era frequentemente interrompido por trovões e relâmpagos, mas conforme o tempo foi passando, tanto os estrondos quanto o aguaceiro foram perdendo as forças.
- Ih! – dizia Leonardo – Parece que a chuva está passando!
- Aqui já passou, inclusive!
- Que bom! Então, pelo visto, no Centro também já não deve ter mais chuva! Estou indo te buscar, pode ser?
- Estarei pronta! Beijos!
“Beijos”. Depois dessa palavra Leonardo não mais falou. Escutou o desligar afoito de Vânia e paralisou. Passou a pensar que os lábios úmidos da menina estavam a cada minuto mais perto dos seus; quis voar para a casa dela.
* * *
Como combinado, Leonardo buscava Vânia em sua casa. O rapaz teve de ouvir do pai da menina uma lista enorme de ordens, mas mesmo assim seguiu feliz sob um céu que começava a mostrar algumas estrelas.
Chegaram ao teatro e, logo na entrada, o cartaz da peça, que trazia a foto do rosto rústico de uma atriz, os convidava a entrar pelo simples impacto. Era um monólogo no qual a atriz interpretava uma mulher que perdera os quatro filhos e o marido em guerras.
* * *
A peça mexeu demais com os sentimentos de Vânia, que por várias vezes deixou escorrer um fio de lágrima. Leonardo só pensava no quão sentimental era aquela menina; tão jovem, tão linda, tão dona de sua própria personalidade, tão diferente das tantas outras mulheres que passaram pela sua vida.
Na saída, ao olharem para o lado de fora do teatro, viam que a chuva voltara e com muita força.
- Mais chuva... – dizia Vânia.
- È... Mas diga! O que achou da peça?
- Linda demais! Amei! Triste, mas muito bonita! E você?
- Também gostei muito.
- Que noite maravilhosa, não?
- Não ainda, Vânia.
- O que falta?
- Preciso dizer?
- Sim, com todas as palavras.
- Mas...
A timidez de Leonardo o tinha deixado leve e solto até então, mas, diante da maturidade de Vânia ao ser posta próxima ao beijo, o travava.
- Diga! – dizia Vânia com os lábios entreabertos, deixando a ponta da língua à mostra.
- Um...
- Diga!
- Um beijo!
- Só se for um beijo na chuva! – dizia Vânia numa empolgação inesperada, talvez, até mesmo por ela.
- Na chuva?
Corriam então os dois para o lado de fora do teatro para reproduzirem a cena de beijo mais sonhada por Leonardo.
Mas quando o rapaz abriu os olhos, estava na verdade sozinho a rolar na grama do quintal de sua casa, sob a imensa chuva, ainda às cinco e quinze da tarde daquele sábado; beijava uma Vânia imaginária, que àquela altura devia ainda estar esperando o telefonema de Leonardo. Sentiu-se tendo que enfrentar a sua timidez toda “novamente” e com um medo enorme de Vânia não ser tão meiga como no sonho.
Leonardo ligava para Vânia e desmarcava o encontro – tinha a chuva como desculpa. Fria, a menina respondia: “OK, fica para a próxima, então”.