DEUS - Breve relato de um acontecimento na Guerra Portuguesa/Africana de 1961-1974 -

A origem deste conto remonta a 1996, quando a meio de uma noite de copos académica, uma amiga minha me contou uma pequena história passada no cenário da guerra colonial portuguesa (1961-1974).

A história era muito breve, mas coloquei a imaginação a funcionar, adicionei-lhe a minha experiência militar, transformei-a em Conto e eis que nasceu uma espécie de relato, que corrigi parcialmente em Setembro de 2009.

Conseguem adivinhar a parte real e separá-la da ficcional?

Fica aqui o desafio

DEUS

António pensou ter o destino traçado quando, ainda nos bancos da primeira escola descobriu gostar de leis.

Não sendo o exemplo acabado daquele tipo de colegas que, ao mínimo anseio do mestre se mostravam demasiado disponíveis, sempre respeitara e se fizera respeitar.

Em casa, o pai, técnico de contas das pequenas empresas da zona, fizera-o ver que o respeito pelo próximo e a solidariedade eram valores pelos quais deveria orientar a sua vida. Vira o avô de António, republicano das primeiras barricadas e interveniente activo mas anónimo no dia que ficou na história como o fim dos reis, ser primeiro silenciado e de seguida encerrado num qualquer lugar suficientemente obscuro para os partidários da nova autocracia, surgida vinte e tal anos depois da sua primeira revolução não o poderem ouvir. O olhar mudo e afastado do avô foi a primeira lição de arbitrariedade que o futuro advogado aprendeu. Até a uma certa idade não compreendeu este mutismo, julgando ser aquele homem maciço, de barba e cabelos eternamente brancos, mas de postura de uma esfinge, senil como os avós de amigos seus. Quando soube da verdade passou a olhar o velho republicano com o respeito que merecem os homens de honra e elegeu-o como seu único herói. Nunca mais iria atribuir este título a mais ninguém.

Vivendo o liceu em plena e louca década de sessenta, ajuizou segundo a bitola do seu mito os acontecimentos nas colónias e, embora se mantivesse discreto, olhava os “turras” como libertadores e não como agentes subversivos. Novamente o sentido de justiça fê-lo desacreditar a propaganda do regime, mas a descrição que sempre fizera questão de manter, pô-lo relativamente à margem das crises académicas, vividas num dos centros da efervescência académica, a cidade beijada pelo maior dos rios nascidos na nação.

Concordava, era obvio que não podia deixar de concordar, com os colegas, mas deixou a militância para as greves académicas, aproveitando o tempo livre para estudar, participar num ou outro ajuntamento, e para solidificar a profissão tida em mente -Seria Juiz, tentando aplicar equidade a aplacar as desigualdades por si vistas bem demais. Apesar de não poder escapar às sortes, julgava poder evitar o teatro africano, ilusão desfeita no final de curso e no consequente assentar de arraiais numa unidade militar. Manteve a postura e serenidade, apesar de temer pela ida.

Mesmo depois de o terem informado da sua próxima viajem – A mais dura das colónias, Guiné, e um dos piores destinos para a tropa, (o que o levou a pensar que a factura paga pelo avô era herdada), António acreditou na justiça. Pouco antes de partir passou ao lado das Madrinhas de Guerra, casando com uma colega de Letras e companheira de anseios, a sua adorada Mariana. A partir desse momento sabia ir regressar, porque lhe fizera a promessa de voltar, e como homem de palavra, fazia questão de a manter até ao fim.

Num dia ensolarado e húmido, deu consigo a entrar num quartel onde iria por fim fazer cumprir a lei. Infelizmente não levava na mão os códigos, tendo a substitui-los a tiracolo a indispensável espingarda automática G3, à qual, por uma questão de pudor e respeito se recusou seguir a tradição militar que quase o obrigava a atribuir o nome de uma mulher à arma de serviço.

Desde o primeiro dia que se sentiu mal naquela pele verde, algo de artificial, algo de implantado que não fazia definitivamente parte de si, isto apesar de já ostentar alguns tiques com que os militares esperavam fazer sobreviver os homens no mato.

Iria pois passar a comissão de olhos fechados, pensando no regresso e hominizando-se à selvajaria na qual estava inevitavelmente metido. Conservando e treinando uma postura que esperava manter nos tribunais da metrópole quando regressasse, em breve passou a ser conhecido entre os subordinados e superiores como oficial rigoroso, cumpridor, exigente, mas sensível aos deslizes casuais e à fraqueza dos novatos. Esperava e cultivava acima de tudo a descrição que foi impossível de manter quando, num fim de tarde viu um negrito aproximar-se de si e lhe pediu comida. Simpatizando de imediato com o sorriso da criatura de palmo e meio e pouco menos de dez anos, abriu um alforge e deu-lhe a ração de combate, destinada à patrulha do dia seguinte

“Que se lixe, apenas algumas horas sem comer...”

-Pensou enquanto se maravilhava com a avidez satisfeita do negrito a quem baptizou (à mingua de saber o seu nome) de Luís, nome do agrado dele e de Mariana, com a qual iria baptizar o seu primeiro filho, já tido no ventre da mulher.

O que António estava longe de imaginar era com a verdadeira amplitude do seu simples gesto: quando regressava da missão, e mal avistou os muros da unidade militar, foi literalmente assaltado por Luís e meia dúzia de amigos, que, de mãos esticadas e sorrisos ainda mais bonitos lhe pediam comida. Dividido entre a impossibilidade legal de satisfazer os pedidos, e os velhos esquemas da tropa, seguindo os quais se arranjaria alguma coisa, ainda sem tomar banho foi ter com o camarada responsável pelas refeições e pediu-lhe que mandasse preparar algumas a mais. No compadrio da patente igual e da mesma cidade de estudo, o outro nada perguntou, limitando-se a entregar-lhe “o excesso no local combinado”, numa zona pouco frequentada para não dar nas vistas.

Depois de satisfazerem as barrigas de fome, ante o ar embevecido do Alferes, a pequena multidão virou-se para ele e, em uníssono agradeceram

”Obrigado Deus!”.

Quando nos dias seguintes as crianças começaram a vir ter com ele novamente, e o trataram repetidamente por Deus, António compreendeu o aparentemente agradecimento divino. Ficara sensibilizado, mas também incomodado. Limitara-se a agir por mera bondade, pelo accionamento inconsciente do seu sentido de justiça, pelo humanismo e solidariedades tão arredados daquele inferno, onde não passava um mês sem perderem homens, limitara-se a dar apenas comida, recebendo por isso o tremendo elogio de ser tratado daquela forma...

Com o tempo a passar, os estratagemas para amainar a fome dos mudos (que não paravam de aumentar em número...) tiveram de ser diversificados, mas a amizade com o oficial de abastecimentos e a pouca quantidade pretendida em relação às reservas militares de comida, continuavam a dar vazão aos pedidos. E não era raro vê-lo, quando não se encontrava de serviço, com a pequena multidão que, mesmo quando não estavam a comer faziam questão de o acompanhar, chegando ao ponto dele sacrificar o tempo de algumas cartas à mulher para estar com eles. Por causa desta popularidade, era tratado pelos seus pares quando não estava presente como Deus, e respeitado ou olhado de esguelha consoante os sentimentos que fazia surgir na sua acção.

Apesar de ser incentivada a convivência com as populações locais, Deus não era invulnerável às críticas, se bem que ele continuasse, como se nada se estivesse a passar. Sentia ser uma espécie de imperativo categórico, uma obrigação, a aliviá-lo da terrível tensão que sobrevia cada vez que vinha do mato, cada vez que tinha de disparar e saber estar a matar alguém. A barreira a separar os homens da loucura na guerra era demasiado ténue, e, entre os vários estímulos que António colocara no seu lado são estavam Mariana e Luís, a personificar todos os negritos, aos quais era impossível dar ou conhecer o nome.

Mas houve uma altura em que o comandante da unidade, já exasperado com o espectáculo de ver um homem seu ser tratado de forma tão divina, e do “desperdício da comida do exército ser gasta daquela maneira”, chamou António à parte e mostrou-lhe o seu desagrado. Rígido como um pau de vassoura, fez ouvidos moucos aos motivos do Alferes, chegando ao ponto de o ameaçar com acções disciplinares mais concretas se a coisa continuasse.

Em desespero de causa, António levou-o para o local onde alimentava o bando, pegou nalgumas latas cheias, deixou que a multidão se juntasse e perguntou ao superior:

“Meu Coronel, tem filhos?”

“Até já tenho netos, um casal!”

“E suponho que goste deles?”

“Homem que pergunta! É obvio que sim!”

“Então gostava que chegassem a este ponto?”

E abriu algumas latas, atirando pedaços de comida aos miúdos, como se alimentasse pombos com milho, enquanto eles se atiravam aos pedaços de carne em bando tal como pombos.

Nunca mais o Coronel o incomodou, limitando-se a pedir apenas alguma descrição, não fosse o caso de aparecer alguma inspecção, pouco benevolente com aquele tipo de humanismo...

Entretanto os combates intensificavam-se, a situação militar complicava-se definitivamente para o lado dos portugueses, obrigando a um recrudescimento das operações. Apesar do aumento de pressão António continuava a alimentar alguns possíveis filhos de guerrilheiros, pois apesar de tudo, a guerra não era destas crianças. Talvez o futuro resultante do conflito, mas a guerra não.

Quando faltavam dois meses para o fim da comissão, e numa altura em que se falava insistentemente do abandono do quartel pela pressão do inimigo, António saiu em missão de reconhecimento com o pelotão. A meio do percurso rebentou intenso tiroteio, de tal forma que vários homens desapareceram. Ninguém viu nada, mas tinham-se que se fazer registos, ficando o Alferes como desaparecido em combate.

Nessa noite, Luís chegou a casa, com os olhos em lágrimas virou-se para os pais, olhou o fundo da sua casa como se procurasse alguma coisa, e depois olhou longamente o céu estrelado enquanto murmurava só para si e com voz apagada.

-Deus morreu.

Algures em 1996, corrigida em 1999 e também em Setembro de 2009

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 12/09/2009
Código do texto: T1806132
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