UM RELATO

Nos idos de 2004, na cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará, por volta das sete horas da noite, tornava eu a casa depois de ter passado algum tempo com uma (atualmente) ex-namorada e ex-noiva. Era um domingo.

Descendo a pé a imensa avenida Alcindo Cacela, à altura do Colégio Ideal Júnior, ocorreu que a poucos metros, do outro lado da pista, um gatinho mirrado e desatento tentou atravessar.

A Alcindo Cacela é freqüentemente percorrida nesse horário por motoristas bêbados, viaturas da polícia e moleques hebefrênicos expondo-se a suas namoradas idiotizadas.

Vi o gatinho confiantemente correr para um ponto a alguns metros a minha frente. No meio do trajeto, porém, ele foi colhido pelas rodas de um carro pilotado por um dos moleques supracitados. Provavelmente este nem percebeu o que ocorrera. Mesmo se tivesse percebido, nada poderia fazer, nada quereria fazer.

O bichinho, com a proverbial agilidade dos gatos, conseguiu ainda, correndo, alcançar o meu lado da pista. Alquebrado, arfando, escondeu-se por segundos entre as raízes de uma mangueira próxima.

Há, na Alcindo Cacela, neste ponto, uma vila antiga formada por belos chalés. O felino, com dificuldade, entrou pelo portão de um deles.

A última visão que tive dele foi essa: deitado na escada da entrada, lambendo as patinhas, com certeza, feridas gravemente.

E continuei seguindo, até hoje.

Cinco anos depois, pergunto-me se... não, preciso ter certeza de que uma bondosa velhinha abriu a porta naquele instante e, com o amor que só o tempo e o sofrimento concedem, cuidou do gatinho.

Pois minha mente me prega peças...não sei o que vi, nem o que eu não vi. Desculpem. Sei que vocês não podem me ajudar. Só esta velhinha, que pode muito bem ser um sonho.

As religiões do mundo falam muito de um estado de graça, de exaltação mística, de fusão com o universo, de liberação do eu, de compreensão repentina, de vazio primordial, de extratemporalidade. Esse foi um dos dois momentos em que tive a certeza de tê-lo pressentido. O outro, por coincidência ou não, também está relacionado a um animalzinho.

Bondosa velhinha...onde está você?

Filicio Albara
Enviado por Filicio Albara em 10/09/2009
Reeditado em 12/09/2009
Código do texto: T1802171
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