NA CAIXA DE MENSAGENS: AMIZADE VIRTUAL?

Assunto:Amizade virtual. Você caiu nessa?

De:Samanta

Data:27/09/2008

Para:você(naoresponda@querosaber.com.)

Olá, tudo bem com você?

Espero que sim. Faz tempo que não entro em contato, mas também não tenho visto mensagens novas na minha caixa de entrada. Por que sempre achamos que os outros é que devem nos mandar emails e ainda serem gratos por respondermos?

A tecnologia resolveu muitos problemas, mas trouxe consigo outros, principalmente nos relacionamentos. Algumas pessoas acham que conseguiram o tão sonhado “oscar” de mais popular por terem milhões de contatos, por criarem blogs visitados diariamente, por suas comunidades estarem abarrotadas. Isso é ótimo, não? Pois é, tem gente que acha. Esses dias conheci uma dessas pessoas famosas da web. Digo, conheci pessoalmente, ao contrário de muitos dos seus milhões de contatos.

Só para você ter uma idéia do poder de sua popularidade : ele colocou um vídeo no ar que fez o maior sucesso, apareceu até em programas de televisão entre os dez vídeo mais engraçados da internet. Um de seus blogs já ganhou vários prêmios.Seu nome (ou apelido) se tornou tão popular que fizeram uma comunidade para ele:

“Quem conhece Larybee City”? Sinceramente não sei o que viram de tão especial num apelido com nome de lugar. Acho ridículo.Vai dizer que é inveja? Desculpe, inveja tenho dos apresentadores de televisão que ganham em um mês o que eu vou levar anos para juntar. E outra, conseguem ser populares sem muito esforço, basta mostrar a cara na tela, na revista e pronto. O sacrifício que fizeram para chegar ali? Bom, todo mundo tem uma história de luta, certo?Mesmo quem nunca precisou suar a camisa.

Então, por alguma inexplicável coincidência (tudo bem, também não acredito nela, mas a palavra se encaixa) essa criatura apareceu numa sala de bate-papo e quis teclar comigo. Depois das apresentações de praxe: “oi”, “olá”, “como vai?”, “bem”, “de onde tc?” o cara mostrou porque é tão popular.Sim, admito que ele é um gênio do bate-papo, divertido, inteligente, rápido nas respostas (devia ter uma conexão decente).Notei que várias pessoas teclavam com ele e não sei como conseguia responder em tão pouco tempo. O fato é que o cara era demais, sobretudo para aconselhar seres carentes e perdidos nas madrugadas.

Não demorou muito para conversarmos no msn. Logo estávamos varando a noite sem esgotar assuntos. Isso se tornou costumeiro. Não é todo dia que se pode conversar com alguém tão interessante e isso por um lado começou a me deprimir, porque no dia a dia (pelo menos no meu) ninguém era assim tão espontâneo, cheio de idéias e entusiasmo. Sabe aquele tipo de pessoa que irradia vida, mesmo que seja através de letrinhas? Fiquei pensando como seria melhor se pudéssemos conversar olho no olho, ouvir a voz um do outro, ver expressões. As pessoas são fascinantes, apesar de muitos não pensarem assim. Mas experimente passar um ano longe da civilização, só vc e as palmeiras, depois diga se não sentiu falta de alguém? A solidão não faz parte de nossa natureza.

Propus a Larybee que nos encontrássemos, em um lugar público, claro. Para minha surpresa ele relutou um pouco. Estranho para alguém que parecia ser tão entusiasmado em conhecer pessoas. Insisti até ele acabar com todos os tipos de argumentos e combinamos num shopping. Engraçado que na ocasião nem me preocupei muito com o fato de não conhecê-lo visualmente, tão acostumada estava com as fotos na internet.Só que nem sempre a foto mostra nossa cara comum e nem sempre a foto é nossa.

Pois foi um rosto completamente diverso da minha lembrança que vi na ocasião. Na internet não parecia nenhum galã, apenas um sujeito como outro qualquer desses que vão e voltam conosco no ônibus. Mas ao vivo, bom, se não fosse nenhuma pegadinha, era bem diferente. Para dizer a verdade, singular. Resumindo: deus grego. O cara era alto,musculoso, elegante, rosto másculo, olhos sedutores e nenhuma afinidade com o “geek” popular da internet. O fato é que só ele me reconheceu.

Custei muito a acreditar que fosse o mesmo Larybee. Fiz tudo quanto era tipo de pergunta que poderia comprometer qualquer ensaio e só concluí que ou o cara era um grande ator ou falava a verdade.

Como não era nenhum encontro pretensiosamente romântico, sugeri o Bob's. Entretanto, ele preferiu um sel-service porque gostava de liberdade de escolha(não fui eu que disse). Não sei que tipo de tirania ele viu no Bob's,afinal as pessoas podem escolher o hamburguer que quiser lá, mas tudo bem, sairia até mais barato, pois não sou de comer muito.

Uma das coisas mais interessantes foi o prato de Larybee. Salada verde, broto de feijão, couve-flor empanado e filé de peixe. Tenho que aprender a me conter em certas horas, mas não pude evitar:

- Você está de dieta?-perguntei

- Não, gosto de comer isso.

- Não gosta de comer arroz, feijão....churrasco?

- Não mais do que isso.

Céus! Eu luto contra todos os meus hormônios e instintos para comer uma folha de alface e o sujeito come como se fosse um saco de batatas fritas.

O pior foi quando ele não quis beber nada e eu tive que enfrentar uma coca-cola sozinha. Que culpa!

- Pensei que nossa conversa seria difícil porque na maioria das vezes por mais próximos que pensemos estar das pessoas na internet, ao vivo e a cores era outra realidade. Foi melhor do que esperava. Falamos de muitos assuntos e deixamos o mundo virtual para lá. Confesso que eu não tirava os olhos dele ( e tinha como?) e no fundo alimentava a esperançazinha de um algo mais.

- Queria evitar falar de internet, só que não havia escapatória. Precisava esclarecer algumas pequenas dúvidas ou teria insônia.

- - Por que você não usa sua própria foto? Geralmente quem não coloca é por medo ou sentimento de inferioridade.

- Ele abriu um sorriso e respondeu:

- - Você iria acreditar que era eu se colocasse minha foto?

- Não respondi de imediato. Olhei aquele rosto esculpido, perfeito e tive que concordar, seria dificil acreditar que fosse uma pessoa real. Ninguém é tão bonito assim, pelo menos não nesse mundo de pessoas que precisam pegar ônibus e enfrentar filas de bancos.

- -É, acho que não me convenceria. De qualquer forma você não está sendo autêntico.

- -Fotos mentem até quando tentam passar a verdade, pelo menos na internet.Prefiro ser autêntico naquilo que digo.

- - Palavras são mais deficientes ainda para a verdade.

- -Acredite quem quiser.

- -Você é popular assim na vida real? A propósito, como se chama realmente? Não é Larybee, é?

- -Cosme e na verdade meu círculo de amizades não é tão expansivo.

- Quase engasguei quando ele me disse o nome. Eu aceitaria Ricardo, Rafael, Marcelo... Cosme era um atentado.

- -Desculpe, sem querer ofender, mas você se chama Cosme?

- -Foi o que eu disse.

- -Nossa, diferente, primeiro Cosme que conheço.

- -Não é um nome incomum.

- Eu não queria dizer que os pais dele tinham um gosto duvidoso para nomes, mas se continuássemos nesse ponto...

- - O que levou você a ser tão, digamos, ativo na internet?- tentei desconversar

- - Tédio, solidão, no início, depois...

- -Depois o que?

- Sua reação foi surreal. Pegou em minha mão (antes que eu comesse mais um coração de galinha), olhou bem direto nos meus olhos e falou com uma franqueza que eu jamais vira, nem em mim:

- - Preciso me abrir com você. Nunca senti isso por nenhuma internauta porque para mim não passa de uma brincadeira. Só que com você foi diferente, não posso esconder isso. O que eu quero dizer é que, bem. Nem tudo é como parece.

- Uma declaração um tanto piegas. Até aí não fiquei surpresa, afinal o que mais tem na internet é aparência. Estava pronta para qualquer coisa.

- - Talvez você me deteste depois que eu contar isso- continuou ele-e vai ter todo direito. Não deveria contar, mas preciso desabafar.

- - Então, desabafa.

- - Só peço que mantenha segredo.

- - Meio arriscado pedir isso a uma pessoa que você mal conhece.

- -Nem tanto.

- - Como assim?

- -Eu conheço um pouco mais do que você se deixa conhecer.

- E ele começou a falar de muitas coisas a meu respeito como se já me conhecesse há tempos.Tudo bem que muitas informações estavam disponíveis na web, porém outras, só se ele tivesse acesso ao meu computador que contém praticamente toda minha vida. Senti-me nua .

- - O que você é? Um hacker?- disse num tom um pouco elevado de voz.

- -Não entendo muito de programação, mas conheço pessoas que sabem. Escute, se eu estou contando isso é porque cheguei no limite, não me orgulho disso. Assim, no início é legal, você conhece um monte de gente...

- - Pode parar, pode parar, vá direto ao assunto.

- -Larybee não é uma pessoa.

- -Heim?

- -Quer dizer, já foi. Era meu nick no início. Com o tempo meus contatos aumentaram, os blogs ficaram populares e chamou a atenção de algumas empresas, me ofereceram uma grana se eu lhes fornecesse perfis de usuários para suas pesquisas de mercado e eu topei. Chamei dois primos meus para me ajudarem e começamos a trabalhar direto nisso.

- - Bom, até aí você não disse nada fora do normal.

- - Até uma instituição nos oferecer uma bolada maior para nos aprofundarmos mais na vida das pessoas. Digo, o foco era saber quem usava software pirata, quantas vezes baixavam filmes, músicas, se compartilhavam arquivos.

- Calei na hora.Fiquei pasma. Minha idéia de viver em um país livre estava dilacerada.

- -Nós conseguimos isso de muitas formas inclusive em bate-papos-continuou ele-E sabe as web cams? Essa instituição nos forneceu um software capaz de usar remotamente a webcam da pessoa com quem conversamos, basta ela estar online.Só que isso não é o pior.

- A coca-cola tinha acabado, precisava de mais. Aquilo estava me deixando doida. Pedi ao garçom para trazer outra correndo e incentivei Cosme a prosseguir.

- - Meus primos são verdadeiros gênios e muito gananciosos. Com todo o poder que tinham em mãos agora, começaram a invadir computadores pessoais, pegavam fotos, senhas, dados...Isso começou a ficar perigoso.

- - Como você pôde ser tão canalha?

- -Eu decidi sair. Por isso estou aqui contando para você, me desliguei ontem mesmo.

- - Sinceramente, isso tudo é muito doido...e não entendo porque está me contando tudo isso, nem nos conhecemos direito.

- -E o que conversamos online?

- -Aquilo não conta, a internet é uma farsa e agora estou mais convencida disso.

- -Não é bem assim.

- -Claro que é. Tudo em nome do lucro, da fama, do sucesso.

- - Por isso saí.

- A essa altura já estávamos discutindo e normalmente costumo falar bem alto, sem perceber, quando nervosa.

- -Cosme, isso não muda. Seus primos continuaram a invadir a privacidade das pessoas e sabe-se lá mais o que? E que instituição safada é essa?

- - Sinto, não posso dizer.

- -Está me contando um jogo sujo e não pode dizer um nome?

- -Vai expor você.

- -Como assim? Como saberiam que você me disse?

- Cosme passou a mão nos cabelos, nervoso. Lançou-me um olhar que eu bem sabia porque já tinha visto em algumas pessoas. Estava arrependido. Não de toda aquela falcatrua e sim de ter revelado para mim.

- -Quero que leve isso a sério- ele alertou- Não comente com ninguém, seja por telefone, carta e principalmente email. Esqueça. Vai ser melhor para todo mundo.

- -Agora você está me assustando.

- - Não é minha intenção, mas precisa tomar cuidado com o que diz.

- O mais esquisito de tudo foi que logo em seguida ele se levantou, cumprimentou-me com a cabeça e foi-se embora. Caramba! O cara era um louco. Como se não bastasse tive que pagar a conta dos dois.

- Verdade ou não, uma coisa é certa: parei com esse negócio de relacionamento virtual. Nunca se sabe que tipo de loucura há por trás do teclado.

- Contudo, nos últimos dias meu computador tem se comportado de forma estranha. Imagino que seja um vírus, mas até agora nenhum dos antivírus identificou o danado. Outro dia fui reiniciar e apareceu um outro papel de parede no desktop, fora alguns programas que abrem sozinhos. Não quero dar crédito aquele idiota, mas realmente alguma coisa estranha aconteceu desde o nosso encontro.

- Até onde vai nossa privacidade? Será que realmente temos? Quem ou o que garante isso? Nossa desrespeitada constituição? As leis que não servem de nada para o cidadão?

- Ultimamente ando pensando muito em me mudar para o interior e viver uma vida mais simples. O que você acha?

Até mais.Bjs

Samanta

Renan Moraes
Enviado por Renan Moraes em 09/09/2009
Reeditado em 09/09/2009
Código do texto: T1800474
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