A feirante
A FEIRANTE
Setembro/2009.
Newton Schner Jr.
Em frente àquela casa onde costumo comprar minhas frutas, legumes e verduras eu estava. Notava o horizonte cinzento, de uma tonalidade escura, quase que assustadora. O tempo tem sido cíclico. Recordo que após algumas semanas de chuvas ininterruptas, um calor insuportável fez-se presente por dias. Difícil era acostumar-se a tal oscilação. Difícil também, confesso, era convencer meu coração de que se acalmasse, pois logo o barulho das chuvas tornaria a chamar-lhe pelo nome, dizendo: "Sinta-se à vontade, meu caro! Bem o sei o quanto minhas gotículas, por mais insignificantes que me sejam para produzir, trazem-lhe boas sensações. Conduza seu efeito às mãos do seu criador!".
"Entre", dizia-me a Sra. Hanke. De longe me avistou. Muito provavelmente já se encontrava para o lado de fora de casa e, de imediato, ouviu minhas palmas envergonhadas. "O que você irá pegar hoje?", perguntou-me ela, dando seqüência à amostra dos seus produtos frescos. "Temos uma couve-flor muito bonita... Você irá querer? Se bem que você a pegou na semana passada", "Sim", respondi-a, "eu ainda sequer a terminei de comer".
Da janela da sua cozinha provinha um cheiro bom, apesar de não tê-lo identificado. Tudo naquele instante parecia-me tão aconchegante e, por uma fração quase que insignificante de tempo, senti-me como que membro de sua família. Desejando romper aquele silêncio que pairava sobre seus movimentos, enquanto ela me escolhia cachos de banana e pesava dois quilos de cebola, disse-lhe: "Que tempo, não?", "Ah, está horrível! Tudo fica úmido, difícil de limpar...", "Nossa sorte é a de que moramos em um estado privilegiado, quase que sagrado. Fortes tempestades têm ocorrido com freqüência sobre praticamente todo o Paraná, mas pelo fato de estarmos em uma região elevada, não ocorrem tantos estragos. Se acaso as mesmas tempestades tivessem atingido Santa Catarina, é certo de teríamos presenciado uma nova tragédia". Conciliávamos nossa conversa com a escolha de algumas poucas verduras, pois eu adquiria apenas aquelas que me faziam falta.
"Então vocês são alemães?", perguntei-lhe com curiosidade, já prevendo a resposta. Outrora eu a observava e me questionava; queria eu, de algum modo, conhecer suas origens. Mas algo me bloqueava. Em suas paredes havia quadros, através dos quais eu me encantava: tinha ela, por certo, uma bela família. "Sim, minha mãe é alemã. Ela veio para o Brasil com seis anos". Feliz e entusiasmado, prossegui: "E seu marido, é italiano?", "Não. É brasileiro comum, mas seu pai nasceu em Portugal", "É mesmo? E eu achava que fosse italiano, por causa de sua fisionomia". Naquele instante, ao pronunciar-lhe tais palavras, também me corria o pensamento de que ainda estou longe de determinar, de modo correto, as origens daqueles com quem convivo cotidianamente: ao passo que acreditava ser ele italiano, ela, como recordo bem, era, aos meus olhos, polonesa.
"Minha mãe veio cedo para o Brasil. A situação não estava boa na Alemanha, após o término da Primeira Guerra Mundial. Seu pai, no entanto, não gostou daqui. Apesar da situação difícil, a Alemanha ainda era um país de primeiro mundo. Ele decidiu voltar e quando soube que a Segunda Guerra Mundial havia sido declarada à Alemanha, não pôde suportar e se enforcou. Desde pequena minha mãe, não tendo com quem contar, teve de se virar sozinha". Àquele instante sequer sabia eu como reagir. Conciliava a comoção com o encanto, o choque com o brilho nos olhos. Que mágica era vê-la contar tão bela história. Impressionava-me o modo calmo e natural com que pessoas como ela me trazem oportunidades de ouvir tão belas histórias. E como se não pretendesse dar extensão ao assunto, perguntou-me ela o que mais eu desejaria comprar; eu, como resposta, disse-lhe que mais nada. Quando apanhei aquelas três sacolas, ainda a sorrir, disse-lhe: "Que história! Espero que eu tenha oportunidade de ouvi-la contar a respeito disso novamente!", "Claro! A cada compra, você terá direito a uma nova pequena história".
E feliz, caminhei para casa. Não mais temia a chuva. Sorrindo, pensava que era um privilegiado. Trechos de um livro quase que inacessível, desses que se discutem como que em segredo, me foram pronunciados, sem que eu pudesse prever. Sem que nós nos demos por conta, a simplicidade que nos cerca ganha um novo significado. Eu, que erroneamente por vezes procurei o extraordinário em coisas distantes e longínquas, compreendia que a imensidão reside ao meu lado, presente em cada gesto da gente simples do meu povo paranaense.
Apesar do peso que carregava, sentia-me leve. Deste modo, apanhando minhas compras, recordei a Thoreau: "Se eu fosse trancado no canto de um sótão pelo resto de meus dias, como uma aranha, o mundo pareceria imenso enquanto me restasse o pensamento".