COMPLEXO
Sexta-feira sempre foi um dia no qual eu gostava de chegar do trabalho, encontrar a minha família em casa e jantar com ela. À mesa, gostava de saber como foi a semana de minha esposa Norma e de minha filha Yasmin. Sempre achei isso importante. Quase não as via, por conta do excesso de serviço no escritório.
Minha esposa quase nunca me apresentava novidades em seus relatos semanais, o que me preocupava e muito; a monotonia na vida de uma mulher de quarenta pode trazer complicações graves. Digo isso porque tive uma prima que, por esse motivo, caiu em depressão e se jogou do décimo sexto andar. Sendo assim, procurava aos domingos levar Norma para dar um passeio, o que quase sempre significava ir ao shopping, claro.
Com Yasmin era um pouco diferente. A sua adolescência interminável me trazia sempre uma novidade. Era uma menina até calma, mas com seus “problemas da idade”.
Certo dia, à mesa, Yasmin me chega com um pedido. Haveria uma festa em que “todos os seus amigos estariam” e ela “não poderia deixar de estar lá, de forma alguma”.
- Onde é essa festa?
- Na casa da Carla.
- A Carla não é aquela que...
- Sim, pai – dizia Yasmin olhando para o teto, em tom de deboche –, ela está grávida e não sabe quem é o pai, mas o que isso tem a ver?
- Tem a ver que não quero você, minha filha, em companhia de uma menina que está grávida e não sabe de quem é o filho, ora!
- Ah, pai, por favor, vai!
- Yasmin, eu já posso imaginar os convidados dessa festa.
- Todos meus amigos, pai!
- Pois é. É o que mais me preocupa.
Minha esposa permanecia calada a morder uma coxa de frango. Apenas o seu olhar se movimentava, ora a mim, ora à Yasmin.
- Pai, eu não tenho nada a ver com a vida da Carla. Eu só quero me divertir. É só uma festa.
- Eu posso ir junto?
- Ah, pai!
- Então não vai.
- Pai?! De novo isso?
- É a condição.
- Prefiro não ir!
- Ótimo, então.
Isso sempre funcionava. Que menina naquela idade carregaria o pai numa festa entre amigos? Ela desistia de ir e estava tudo resolvido.
* * *
Durante todo o sábado, Yasmin sequer falou comigo; estava muito chateada pela conversa da noite anterior, logicamente. Até que Norma chegou até a mim e:
- Marcelo, por que não a deixa ir?
- Ela já lhe contaminou, não foi?
- Não, mas é que a menina está visivelmente triste e...
- Ora, Norma, eu dei uma condição a ela...
- E que condição, não é, Marcelo?
- O que há demais? Um pai não pode acompanhar a filha numa festa? Não pode?
- Não dá para conversar com você. Acha que está certo, não acha?
- Certíssimo! É pelo bem da Yasmin, Norma, você não vê?
- Não!
* * *
À noite, depois do telejornal, desliguei a TV e fechei os olhos. Norma já dormia em sono profundo. Apaguei. As noites de sábado eram as minhas preferidas, já que era o único dia em que eu conseguia dormir cedo e acordar tarde no dia seguinte.
* * *
Pela manhã, eu procurava pelas chaves de casa, mas sem sucesso.
- Norma, onde estão as chaves? Quero buscar o jornal!
- No chaveiro, ora?
- Não estão!
- Como assim?
- Não estando, ora! O pior é que esqueci as minhas no escritório, na sexta.
- Então – dizia Norma assustada –, estamos trancados?
- Como, Norma? Se nós entramos, a chave tem que estar aqui. Só se...
Uma hipótese ruim me vinha à mente.
- Só se o quê, Marcelo?
- Yasmin! Onde está Yasmin?
- Na cama, ora!
- Duvido!
Fui correndo até o quarto de Yasmin e o que encontrei eu quase já previa: a cama estava vazia. A menina aproveitara o nosso sono para ir a tal festa. Uma dor muito forte me surgia ao peito. Yasmin nunca fizera isso. Apesar de tudo, sempre respeitara as minhas decisões.
Então, fui até Norma para dizer o que ocorrera, e ao chegar à cozinha, lá já estava uma Yasmin suada, bêbada e com uma maquiagem pesada e borrada. Eu jamais vira minha filha naquele estado, mas preferi o silêncio a uma atitude violenta.
- Vá tomar um banho – foi só que eu disse.
Aquela sua fuga para a festa, a maquiagem pesada, a embriagues só ocorreram, talvez, por conta de minha falta de confiança na responsabilidade e no juízo de Yasmin, confesso.
Se fosse apenas por aquele aspecto de derrota que apresentamos um ao outro naquele momento, estava ótimo; eu encararia como um aprendizado, talvez, para ambos. Mas, alguns meses depois, eu fui notando uma singela barriguinha em Yasmin. Não precisou Norma ou ela me falar sobre atraso menstrual ou coisas do tipo, eu vi e pronto.
- O seu “namorado” já sabe que tu terás um filho? – foi apenas o que perguntei à Yasmin, mesmo não fazendo ideia de com quem ela namorava.
- Eu não tenho namorado.
- Como assim? Carregas um filho “dele”!
Norma, muda, mordia um pedaço de pão.
- Eu não sei quem é o pai do meu filho, satisfeito, pai?
- Como assim “satisfeito, pai”? Claro que não estou satisfeito! Aposto que foi naquela festa, não foi? Não foi?
- Foi, pai! Transei com tantos naquela noite, que...
Não tive forças para nada. Nem um berro e nem um soco. Senti-me fraco, derrotado, falho diante da frieza de uma Yasmin que eu já não reconhecia.
Uma dúvida que, a partir de então, me martela todas as noites – as de sábado principalmente – é: e seu tivesse a deixado ir àquela festa?
Espero que Yasmin sinta na pele a complexidade de educar um filho, pois o seu será justamente o fruto da tal.