O Anúncio


O ANÚNCIO

Fez um círculo no anúncio que achou nos classificados do jornal. As notícias, nesses jornais, são quase as mesmas. As baboseiras de sempre: rebeliões em presídios, corrupções, rombos nos cofres públicos, falcatruas e o diabo que os parta... "Não se lê mais nada que preste na bosta desses jornais! Está tudo podre. O Brasil está podre. Qualquer hora dessas também estarei podre, debaixo da terra". Era mais um desabafo. A vida já não era a mesma para Eduardo, comparada àquela que viveu com Thaís até quando Carolina chegava aos quinze anos. Carol, como a chamava, aquele “fruto” que nasceu do grande amor que existiu entre ele e Thaís.
A separação da mulher refletia no seu comportamento. Além de solitário, andava irritado e, pior, sem tesão, comentava com alguns amigos. Com o palito, que espetava os cubinhos de provolone, furou o círculo, em torno do anúncio, marcado com a esferográfica, e retirou o pedacinho de papel, do meio de tantos anúncios publicados, e guardou no bolso da camisa. Pediu ao garçom, quando lhe trouxe a conta, para jogar o jornal no lixo, se não quisesse ler depois. Pelo menos tinha notícias de futebol, que é a "cachaça" do povão. Deixou a cerveja pela metade. Já que bebia sozinho, cedeu a mesa para um casal. O "Amarelinho" já estava lotado àquela hora, 18 e alguns minutos. Consultou o relógio. Também era sexta-feira, dia da bebedeira nacional. Andou mais alguns passos, desceu a escada e pegou o metrô na Cinelândia. Queria economizar. Só usava o carro nos finais-de-semanas. A pensão da mulher o forçava a isso. Com a filha, Carolina, não tinha contato fazia tempo. Era independente. Ligava-se mais à mãe.
O quarto-e-sala, no Leme, facilitava a sua vida. Distava pouco da estação do metrô de Copacabana. Sem transtornos de tráfego, logo estava no Centro. Sem atraso, era um dos primeiros a chegar ao escritório da Seguradora em que trabalhava. Pagava uma faxineira por semana para limpar o apartamento, que ficava arrumadinho, até com jeito de "ap" de bicha. Tinha que se justificar com alguém que o visitasse: "... coisas da minha faxineira..."
A vida de Eduardo é o retrato de tantos outros desajustados no casamento, que se misturam na multidão. Um bate-papo de bar, uma sessão de cinema, ou teatro, para alguns, como para o amigo desta história, não preenchem o vazio que carregam. Ele era do tipo que veio de família mineira, daquela gente mansa, sem pressa, que sobe e desce as ladeiras de Ouro Preto, por exemplo, para a missa das 6, das 8, das 10 horas, e haja missa; ligada a conceitos e preceitos religiosos. Não aceitava, no íntimo, o seu modus vivendi de agora. Engolia à força. A cidade grande, esse Rio de Janeiro, mesmo maravilhoso como é, não o modificou. Mantinha-se atrelado aos costumes das tradicionais famílias mineiras. Assistiu aos festejos das bodas de ouro dos pais. E desconhecia desajustes nos lares dos irmãos. Quantos não passam por nós, todos os dias, quando o sinal verde se abre nas ruas e avenidas, carregando os seus erros ou as suas mágoas; os adultérios ou as traições!? São incontáveis. Quem sabe, o meu vizinho, que nem conheço, que desce comigo no elevador, não seja um desses solitários? Ninguém lê na testa! São anônimos vários, como ele mesmo, na multidão, carregando as suas mágoas, os seus dramas, as suas tragédias.
"Incompatibilidade de gênios" foi o argumento da separação de Eduardo e Thaís. A verdade dos fatos preferiam não revelar publicamente. Reservaram-se a esse direito.
Naquela sexta-feira resolveu fazer um programa diferente, depois que leu o recorte do jornal. Era a primeira vez que receberia uma estranha no seu apartamento. Correria o risco da censura dos condôminos. "Eduardo receberia uma "irmã". Ficou combinado com o “amigo” porteiro. Mulher sozinha, depois das 22 horas, à procura desse ou daquele, não tem outro qualificativo, é prostituta mesmo. Sabia disso. Ainda havia o risco da AIDS. Mas disso sabia se defender. O anúncio oferecia "garota de programa, bonita, educada, meiga, discreta, seios lindos, bumbum delicioso. Atende em hotel, motel e em domicílio"... "Jéssica" estava "livre" para as 23 horas, conforme a voz do outro lado da linha. Antes já estivera com outro. Com certeza. O corpo manuseado, em tudo explorado, para satisfazer instintos anômalos, talvez, vinha para ele. Era uma profissional do sexo. Ganhava para isso. Imaginava. Aceitou aquele horário. Gostou daquele nome: "Jéssica". Sabia que era fictício, mas gostou. E exigiu uma noite completa. Pagaria as horas extras da mundana. Fazia muito tempo que não despertava com uma mulher ao seu lado. E com ela desejava tomar, de manhã, um "gostoso" banho no acanhado boxe do seu banheiro, como fazia, noutros tempos, com Thaís, a "ex", no amplo e até luxuoso banheiro do apartamento em que viveram, em Ipanema.
Poucos móveis compunham o apartamento. Faltava o "it" feminino, embora a faxineira tentasse. Nenhum quadro nas paredes, nem jarros, com flores ou não, em qualquer lugar. Uma cama larga, de solteirão, uma mesa-de-cabeceira com um porta-retrato com a figura bonita da filha, aos quinze anos, uma poltrona e um televisor num suporte na parede; e o armário embutido, constituíam o quarto do solitário "solteirão". Na cozinha apertada, uma pequena geladeira, apenas com ovos, mortadela, leite e água mineral, se espremia a um fogão velho, pouco utilizado. Era freguês dos "pê-efes", durante a semana, no Centro.
Pelo "pizza-fone" solicitou uma tamanho-família de mussarela e calabresa, que sobraria para a manhã seguinte. Satisfez-se com um pedaço, menos de um quarto, e um copo de leite gelado. Estava na expectativa de um grande esforço físico. Evitou sobrecarregar o estômago.
Até às 23 horas tinha muito que esperar. Ligou a televisão e o DVD. Colocou o CD erótico que havia alugado na locadora da esquina da rua em que morava. As cenas de sexo pouco o sensibilizavam. Será que vou "falhar?" Tocou-se. O álcool, da metade da cerveja que tomou no "Amarelinho", não iria influir naquilo. Tinha experiência. "Com doses de uísque, nunca brochei com a Thaís, por que isso aconteceria agora?" Em vez do tesão, algumas palpitações o levaram a passar a mão direita no peito, massageando o coração. Era a emoção, pensou, de transar, pela primeira vez, com uma jovem de dezoito anos, como dizia o anúncio. Ele que era um cinqüentão, estava curioso. Desligou a tv. Livrou-se da cueca e pegou uma ducha fria para baixar a pressão, que imaginou alterada. As palpitações diminuíram. Esforçou-se em ficar calmo, aspirando e respirando fundo, sentindo o bafo morno no ar que entrava pela janela.
Pouco faltava para as 11 horas. A noite estava quente. Nenhuma brisa vinha do mar. Chegou à janela e viu a avenida Princesa Isabel, lá do 12º andar, mais tranqüila, com poucos veículos que iam e vinham pelo Túnel Novo. O táxi da sua contratada já devia estar entre aqueles automóveis que trafegavam lá embaixo, imaginou.
Voltou para o quarto, ligou o ventilador e passou a ver o filme pornô novamente. Queria fazer com "Jéssica" tudo aquilo a que assistia na televisão, inclusive sexo anal, que nunca experimentou com a ex-esposa. Era aquela velha história das recomendações da Igreja. Tudo tinha que ser ali no "papai-mamãe". Do jeito que Adão e Eva se conheceram intimamente. Dentro do figurino. Fora disso, é perversão, é pecado, vai para o Inferno, quando morresse, ensinaram-lhe, muitas vezes, nas aulas de catecismo. Será que o nosso pai Adão se comportou como um bom menino diante da popozuda Eva? Duvidava.
Cheio de fantasias eróticas, a sua libido, aos poucos, se liberava. A ansiedade crescia a cada minuto que faltava para a hora acertada com o atendente do número que constava no anúncio. Eram garotas-de-programa, imaginava, por certo selecionadas por “comerciantes” do ramo, isentas, talvez, de doenças infectocontagiosas. Os primeiros casos de AIDS já apareciam pelo Brasil. Descartou, assim, o receio de se contaminar com essa ou aquela doença venérea. Tudo ficou bem esclarecido: queria uma garota de, no máximo, 20 anos. Era a sua primeira experiência com uma mulher naquela faixa de idade. Quando casou com Thais, ela havia completado já os seus 35 anos. Mas, era, fora de dúvida, uma mulher atraente, que bem sabia cuidar do seu corpo e, afinal, do seu perfeito visual. O coração ficou acelerado. O interfone não tocava. Ligou duas vezes para a Portaria do prédio, ouvindo a resposta: "Nada ainda de sua irmã", combinado, como ficou, com o porteiro, compensado com uns bons trocados.
Quinze minutos já passavam das 23 horas. "A filha-da-puta deve ter ido pra outro!” Resmungou Eduardo, meio desiludido do compromisso do agente da cafetinagem, anunciada nos classificados do jornal que havia comprado.
Sentou-se na cama e pegou o porta-retrato. A filha aos 15 anos, na fotografia, estava muito bonita. Foi na noite do baile das debutantes. Ela se destacava entre as demais. Lembrava. Era um pai orgulhoso dançando com ela, entre outros pares, embora errando alguns passos, sob os acordes maviosos da valsa Danúbio Azul. "Perdão, filha". Lembrava-se daquele momento. Desculpava-se. Ela era só sorrisos. Um futuro brilhante desejou para Carol, como a chamava.
Com a separação, ficando a filha mais sob os cuidados da mãe, Eduardo distanciou-se de Carolina. Embora vivendo na mesma cidade, tomaram rumos adversos. Uma vez ou outra, um telefonema trocava com a filha, que sempre lhe afirmava que ia tocando a vida sem qualquer dificuldade financeira. Dizia-se independente financeiramente, sem nem mais usufruir qualquer centavo da pensão que a mãe recebia de Eduardo.
A campainha interrompeu a sua "viagem" ao passado. Guardou o retrato da filha na gaveta do criado-mudo. Vestiu a bermuda e a camisa. E apressou-se para abrir a porta.
-- Deve ser a vagabunda! Exclamou meio irritado. O tempo da espera o deixou assim.
Era ela. Mas, "Jéssica", a garota-de-programa, por quem tanto ansiava, era a sua querida Carolina, a sua Carol, que lhe deu tanta alegria no baile dos seus 15 anos.
Eduardo empalideceu. Desmaiou. Um enfarte fulminante o apagou.
Uns poucos conhecidos compareceram ao seu enterro no cemitério do Caju.


Pablo Calvo
Enviado por Pablo Calvo em 07/09/2009
Código do texto: T1797060
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