ELA NÃO QUERIA QUE EU FOSSE PARA A INGLATERRA

Baseado num sonho que tive sobre alguém que perdi, ou que não soube aproveitar, já lá vão mais de 1000 anos.

Esperou por mim, acompanhou-me à distância boa parte do curso, mas como não me decidi...Sei que foi estudar para Inglaterra, depois veio a Portugal para se casar, convidou-me para esse casamento, e nos dias que o precederam estivemos sempre juntos, numa espécie de despedida não assumida, pois depois de casar, nunca mais a vi ou soube dela.

Apesar de não parecer, este conto é inspirado remotamente em facto reais…

À A I

ELA NÃO QUERIA QUE EU FOSSE PARA A INGLATERRA

Por receio da partida em si, e não do regresso, que ambos sabíamos não ir acontecer.

Quis ir estudar para, fora, deu-me na pinha naquele dia. Todos, incluindo eu próprio, ficaram espantados, e procuram levantar mil e umas objecções, travadas pela minha determinação e por algumas centenas de euros que o meu “part-time” e a ausência de algumas noitadas fizeram preencher a conta secreta no banco. Bem...secreta...não o era propriamente, o montante sim. Ninguém me julgava ser capaz de poupar mais do que algumas dezenas de euros. O fito de cada um está descrito nos céus, e o meu parecia ser o de impenitente gastador; parecia, até se dar o “milagre económico” da vontade e um amor desavindo, cuja negritude de perspectivas me fez mergulhar no sofá da casa, onde aprendi a nobre arte do “zaping”, bem como as teias das estafadíssimas séries que pela noite fora preenchiam os adeptos do ócio.

Claro que nem tudo era mau. Descobri algumas pérolas desviadas para horários menos lógicos por razões tão misteriosas como a própria noite em si. Seinfeld, uma das séries favoritas do dúbio público americano, constituiu uma das surpresas maiores. Terá sido pelo humor demasiado comum, de ser tão lógico tornava-se imprevisível?

Francamente!

Tenho de parar um bocado. Olho o parágrafo e sinto-me um falso crítico de televisão...Preocupante, sem dúvida. Inconscientemente, o que procurava nestas noites em lógica e com o mínimo de sentido, além de combater as insónias, procurava combater o vazio que sucede a cada crise sentimental (brrrr...!-o termo ainda hoje me assusta) procurava achar-me, e talvez por isso tenha procurado identificar-me com algumas destas personagens tão adoravelmente comuns...Com Kramer, o alienado de serviço, senhor de uma muito personalizada e estranha filosofia de vida a coisa até foi fácil. No fim das primeiras sessões julguei ter ficado por ali, mas, mesmo ao lado, escondido no canal da “anti-moda”, descobri e penetrei nos meandros do”Duck-Man”, o pato mais detestavelmente odiável deste lado do universo, cuja truculência e cinismos faziam corar de vergonha os afamados “Simpsons”.

Por coincidência ou talvez não, a voz deste desenho-animadíssimo” era emprestada pelo melhor amigo de Seinfeld -George, figura pitorescamente apagada, E eis que as identificações voltam ao de cima. Senti um qualquer incómodo. Com o pato não podia ser, pois eu até nem gosto de aves, nem me revejo na maldade desta ave (estou a falar do boneco, pois com os patos em si até simpatizo). Descobri a verdade quando dei comigo a fazer esgares cada vez que George aparecia preenchendo o ecrã com as suas faltas de carácter e egocentrismos exacerbados no ridículo permissivo duma série deste tipo. Por um momento senti um frémito de horror! Era com ele que me evitava identificar, apesar dos pontos em comum serem dolorosamente muitos. George, entre outros defeitos, tinha o de ser instável e boçalmente sedentário. Temia-o. A sério, desenvolvendo o zaping quando lhe adivinhava a presença, mas sem o conseguir, ficando parado, incapaz de me mexer a observá-lo de lado. Ele devolvia-me alguns dos fantasmas de que jurei um dia afastar-me, mas nos quais caía ciclicamente. Ele era irreal, mas eu não. Talvez por este ridículo da comparação tenha decidido partir.

Ela não queria que eu fosse para a Inglaterra.

Pela distância, pela saudade, ou pelo mar. Ela sempre teve medo do mar.

Confessou-me um dia que se esteve quase a afogar, não no mar, mas numa piscina. Mas, caramba, água é água, e quando não se sabe nadar basta apenas um pedaço dela para nos desgraçarmos.

Embora nunca lho tivesse confessado, também tinha acontecido o mesmo comigo, mas eu sabia nadar. Grande coisa! Quando o disparate andava aliado à inconsciência, vinte anos e tal anos de prática de pouco ou nada nos servem. Que o digam as sucessivas gerações de nadadores-salvadores que deram o prazer aos meus pais de devolver pela mão o filho atrevido. Isto até aos dez anos. Depois ganhei a vergonha necessária para começar a evitar a humilhação dos basbaques habituais a devorar-me o rosto enquanto o protector me advertia e me ensinava pela milésima vez a cor e o significado dos sinais. Aos quinze, enquanto ganhava corpo o juízo por fim iluminou-me, tendo desenvolvido a arte de disparatar fora dos olhares dos homens e mulheres do Instituto de Socorro a Náufragos. Deram então entrada em cena os populares não-especializados, renováveis todos os anos, e por via disso mesmo, pouco importados com o “azar”(expressão minha utilizada para as necessárias desculpas).

O mais absurdo é que eu não gostava propriamente do mar...evitando as areias à força toda, e temendo as ondas. Quando a vontade paterna falava mais alto, lá se dava a estranha doença que se apoderava de mim quando entrava na água, e eis-me a desafiar Neptuno. Francamente nunca percebi esta dicotomia...Àqueles que diziam terem os portugueses o mar na alma, eu olhava-os de soslaio chamando-lhes passadistas e pedindo a deus a misericórdia necessária a estes apóstolos do antigamente. Era água e pronto! Agora dar sentimentos à água...Para mim, ela servia para tomar-mos banho, pescar, extrair petróleo e poluir-mos! Pensava...por estas e por outras é que o nosso povo nunca iria longe.

Por estas e por outras é que acho ser a infância o período mais docemente tolo da vida de alguém.

Anos mais tarde vim a descobrir a saudade nele. Nunca fiz um auto-de-fé pelo que pensei e senti antes, pura e simplesmente porque não tinha sentido, como tem pouco sentido este conjunto de tergiversações.

O mar era saudade, nunca o soube porquê, sentia-o, e sinto apenas.

Ela não queria que eu fosse para Inglaterra.

Pelo tempo, do nevoeiro húmido, ou pelo tempo perdido.

Que todos dispensamos à nossa vida. Aquela tarde, onde quis devorar uma série de televisão, enquanto a nova vizinha chegava e era saudada pela rapaziada do bairro, farta das namoradas de sempre da zona, e embevecidos pela figura estranha, não por ela em si, mas por ser estranha.

Perdido...no começo da fase agnóstica, em que combatia o deus dos outros, imposto às 10h dominicais pela família, com pensamentos pouco católicos e por ideias subversivas, com as quais procurava justificar o início da minha não crença. O mais estúpido disto tudo é que eu gostava de Igrejas...mas não do ambiente. Saturava-me ouvir a mesma pessoa a falar durante quase uma hora. Saturava-me e assustavam-me os previsíveis mas sempre abruptos momentos de pausa. Saturava-me os beijos lambuzados no momento de partilha, os rostos velhos das simpáticas velhinhas que assaltavam o meu rosto com lábios grossos e saliva à partilha. A coisa amainou na adolescência e até ganhou alguma piada. Dizendo aos meus pais que ia ter com amigos, posicionava-me no início da cerimónia bem por detrás das belezas da congregação; estoicamente aguardava o “momento da partilha” e eis que me iniciei na arte do beijo. Iniciei é uma forma de expressão...só no sentido de ter provado o aroma do rosto de miúdas que não fossem as minhas primas, e as quais, naturalmente tratava com o máximo pudor.

Do mal, o menos. Da religião fiquei com alguns princípios e com o sabor do beijo (desculpem-me a insistência, mas a recordação é deliciosa...). Para não variar, quando provei “a coisa a sério” vi até que ponto fora ridículo no mistificar dela.

Curiosamente a minha professora desta arte sentava-se perto de mim, mas nesse registo não a conheci, e, para dizer a verdade, nunca tinha reparado nela. Só mais tarde, numa festa de amigos, para meter conversa ela se apresentou como vizinha...Já me esqueci do seu nome (não é bem assim, lembro-me perfeitamente mas não me apetece invadi-la). Sei que depois do breve namoro, passamos a tratar-nos quase como estranhos e que anos mais tarde ela largou os estudos e casou com um colega de trabalho. A última notícia que tive sua disse-me que ela tem dois filhos e que emigrou para o Canada, depois da empresa onde trabalhavam ter falido. Apesar de não sermos nada, de nunca termos sido, assustava-me (ainda me assusta) todo aquele mar...O que vale é que foram certamente de avião...

Ela não queria que eu fosse para Inglaterra. Não pela ilha, nunca lhe disse nada o país, podia ser outro qualquer, mas calhou ser aquele.

Lembro-me, um dia, de estarmos a jogar o “Risco”, espécie de jogo de estratégia para principiantes, e cujo objectivo declarado consiste em dominar o mundo. Quando, numa jogada qualquer me apossei da ilha, verifiquei que esta praticamente não tinha defesas. Olhei para o rosto dela e notei a presença de uma absoluta indiferença. Como tinha mais prática do jogo avisei-a sobre o perigo de ceder tal posição. Em vão, à indiferença sucedeu o aborrecimento de quem não quer o assunto referido.

Nunca cheguei a perceber a razão deste comportamento. E afinal, era apenas um jogo, pelo que nunca mais pensei no assunto. Contudo, quando, numa avenida da cidade parou ao seu lado um Ford de matrícula amarela e autocolante GB, e da janela saiu uma cabeça ruiva de sorriso bem disposto a pedir-lhe informações, ela por gestos disse nada perceber de inglês, deixando-me a ingrata e cómica tarefa de, com três anos de língua muito mal dada, auto-didatismo “made in” MTV e CNN e gestos demasiado latinos, lhes explicar onde ficava o seu destino, no lado inverso da cidade, em relação ao ponto onde nos encontrávamos...

Mais tarde, ao lanche perguntei-lhe porque, sendo ela melhor do que eu, me obrigara aquele episódio grotesco, certamente referido no círculo de amigos dos dois turistas...A evasão foi a resposta. Estranho, pois sabia que ela frequentara e concluíra um instituto onde os formados dominam o inglês perfeitamente. Forcei a nota e um -”E tu? Gostas de espanhóis? Não? Porquê?” Calou-me. Como qualquer português alimentava um ódio de estimação pelos nossos vizinhos, embora estivesse longe de possuir um motivo racional, para além do tradicional “ainda não desistiram de nos invadir”, no qual me sentia ridículo, cada vez que conheço e falo com um deles, pois regra geral acho simpático esse povo, sem bem que um pouco demasiado orgulhoso e altaneiro para o meu gosto...

Ela não queria que eu fosse para a Inglaterra. Era longe, longe demais, longe de mim, bem dentro do mar.

Pensei ver aqui a resposta ao anterior parágrafo.

Mas nos já tínhamos acabado quando eu tomei a decisão. Será porque o adivinhou?

Nos momentos em que o silêncio significava o desgaste emocional, ela podia-me ter visto a folhear qualquer Atlas e a perder-me demasiado tempo na gravura da ilha. Talvez… Quando descobri a banda-desenhada em puto, também descobri o Major Alvega, primeiro e idolatrado herói, e depois dele os ingleses, na propaganda dessas aventuras. Apesar de ao oficial ter sucedido uma infinidade de heróis, nunca tivera a coragem de me desfazer dos poucos exemplares. Talvez ela os tenha descoberto e a partir dai...Ou talvez porque alimentara uma paixão naturalmente platónica por uma actriz inglesa (bem, foi até mais, mas isso não vem ao acaso); por acaso esquecera-me de deitar para o lixo alguns posters delas, onde gratafunhei pouco invisíveis “Y Love You”. Mas eu tinha quinze anos!

As hipóteses eram muitas, porque ao longo da minha vida acabara por chocar com este povo em múltiplas ocasiões. E, se eu próprio desconhecia o motivo que me empurrara para lá, porque havia eu de a questionar?

Ela não queria que eu fosse para a Inglaterra. Por tudo e por razão nenhuma, queria-me por perto, julgo eu.

Adorava-a, depois de assim pensar ainda passei a adorar mais.

Tínhamos acabado de comum acordo, gostávamos um do outro, mas chegámos à conclusão que não aguentávamos mais; perto do fim, as discussões por motivo nenhum sobrepuseram-se às palavras e olhares doces, e à própria vontade de partilharmos um espaço físico e mental comum.

Ainda lhe telefonara para casa, no duplo sentido de querer saber como ela estava, e se o reatamento era possível. Ao fim de meia hora matámos a saudade com as discussões costumeiras sobre coisa nenhuma, Mantive o bom senso de nada lhe contar sobre a decisão de partir; só quando a levei a casa e nos despedimos, “como bons amigos”, lhe revelei a má-nova. Olhou-me então com a ternura dos bons momentos, mas nada disse. Adivinhei-lhe no olhar um “não vás”. Mas quantas vezes o confundira? Podia ser apenas “escreve-me”, ou “desejo-te boa sorte”.

Por um simples olhar não valia a pena trocar um destino.

Ela não queria que eu fosse para a Inglaterra. Talvez porque o sonhei, porque ela nunca existiu, e eu jamais pensei em sair daqui.

Foi um sonho engraçado.

Ela, sentada numa cadeira, com um palmo de mar a cobrir-lhe os tornozelos, chapéu de palha leve na cabeça, fim de tarde, e qualquer jornal nas mãos. Não falava, apenas pensava esta frase, mas no feminino.

Em Inglaterra tinha amigos de ocasião dos programas de intercâmbio, amigos de uma noite de muitos copos e nada mais.

Ela tinha vários rostos, os rostos das mulheres que tive a sorte e também o privilégio de amar. Algumas existiram dentro e fora de mim, outras apenas na ambição, embora nunca tivesse sido realmente o conquistador que todos os homens gostavam de ser. Preferia ser seduzido. No entanto elas achavam o contrário. Foi nelas que descobri ter um charme e sedução próprios, se calhar à força de estar convencido de não os ter...Patranhas.

Detesto, sempre detestei que me entrassem na cabeça, e quem o fizesse arriscava-se a sair da minha vida. Só o admitia a quem o fizesse inconscientemente. A única forma de não criar antagonismos era esta. Assim, como poderia detestar alguém com quem sonhava, pois quem penetrava era alguém por quem irremediavelmente me sentia atraído nos mais diferentes sentidos? Ela entrou-me, elas entraram-me, mas a garota continua a não ter rosto...eu bem o queria, mas não o adivinho.

E se ela nunca assim existiu, como poderia eu querer sair daqui?

As memórias e as pessoas nunca foram estas, talvez por serem colagens de outras vivências ou frutos da minha imaginação? Ou talvez porque tudo é demasiado real. Ela pode existir, ela pode ter um nome e rosto e lá estar; a infância pode ser a minha e o mar também, bem como os sentimentos, ou talvez apenas sejam eles reais, e esta história a única forma de lhes dar isso...forma, vida.

Francamente não o sei, talvez porque afinal tudo tivesse sido, e ainda seja um sonho.

Primeiro esboço de Outubro 98, totalmente corrigido e parcialmente alterado em Setembro de 2009

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 06/09/2009
Reeditado em 01/08/2022
Código do texto: T1795496
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