Café com bolo
O aroma do café percorre a cozinha e incita memórias enquanto a tarde cai lentamente sob as árvores do jardim. O contraste da toalha azul e branca nos convida a visitar simples histórias que, somadas pela matemática do destino, nos trouxeram ao presente momento. Era o mesmo azul das profundas águas de nossas memórias. Navegava em outros oceanos repletos de emoções tal como àquele que cruzei em busca de minha amada. Como prefácio, o aroma de café.
Talvez a chuva fina se transformasse em apenas mais um complemento, naquelas tardes de negócios. Enquanto as gotas acumulavam-se no vidro, a cafeteira, já com os primeiros vestígios de ferrugem, chegava ao centro da mesa. O bolo quente derrete-se aos poucos sob a luz fraca da cozinha.
- Está cega – a mulher reclamou sobre a faca com que cortava o bolo.
Tanto quanto nossa sociedade, a se perder nas maravilhas do mundo moderno e esquecer dos simples sabores que compõem uma vida. Nossas vidas. E ainda me perdia entre as gotas de chuva. Entre a tempestade que se anunciava.
O café forte provoca ainda outros sabores. Sabores de uma adolescência que vivemos em um tempo que, naquele instante, me parecia tão próximo quanto o pote de açúcar.
- O suficiente – respondi.
Não estava tão doce e, como notei após algum tempo, levemente amargo. Entre goles e vendas, ouvia histórias e revivia cenas que se transformavam no filme das vidas daquele casal. Desejei ter uma caneta com a qual pudesse anotar tais fatos. Restava-me confiar em minha memória de raízes sólidas, composta de fatos e histórias, casos e amores, como estes que agora eram-me presenteados. Estes simples contos não pertenciam mais a seus autores e protagonistas. Ganhavam as curvas do rio de minha imaginação a serpentear sem destino até que uma simples caneta os colocasse no papel.
- O preço está por volta do que combinamos… por favor, aquela caneta – apontei para o objeto ao lado do telefone.
- Gasta – o homem respondeu enquanto remexia seu bolso. – Tome esta.
Ali todos os meus anseios estavam saciados. Caneta, papel e uma folha de caderno. Números não me agradam, mesmo que dependesse deles. Por um momento, a venda do açúcar tornou-se um pretexto. Havia tornado-se a chance de ouvir outras histórias.
- Está caro hoje, meu amigo. Deveríamos negociar um pouco.
- Apenas continue a contar seus casos enquanto faço algumas anotações como rascunho.
Calculei todos os preços novamente, mas, incapaz de fazer tais contas, pedi uma calculadora.
- Mais um cafezinho?
- Sim, obrigado.
Não precisava de açúcar: a doçura das histórias e segredos revelados já me apetecia. Talvez, um pedaço de bolo.
Tornei-me amigo e conselheiro. Conheci parentes e seus casos. Vivi amores, como se me pertencessem, ganhar as curvas da minha imaginação. A missão de transformar um pequeno pedaço de papel em emoções únicas a esculpir a própria história.
Embarquei no barco de emoções em meio à tormenta. Ouvi a suave respiração de um bebê no colo de sua mãe. E ali estavam as ferramentas que tornariam tudo isso em realidade.
- Este é o preço final – falei após algum tempo.
- Ainda está um pouco acima do que costumamos comprar – respondeu o homem. – deixe me fazer uma última oferta…
Levantei-me da mesa cumprimentando-os. O açúcar não havia sido vendido como o esperado naquele dia. Coloquei o saco na mesa pela última vez.
- Posso ficar com a caneta?
- Claro, mas… - interrompi antes que pudesse perguntar qualquer coisa.
- Excelente fazer negócio com você meu amigo.
Vendi o quilo por um preço abaixo do padrão, mas trouxe a caneta, mesmo que não precisássemos. Tínhamos várias e muitas que há anos haviam perdido a cor a esperar que alguém perguntasse se havia alguma caneta com a qual se pudesse anotar um número de telefone. Precisava transformar inspiração em palavras.
Entrei no carro rapidamente. Havia guardado o pedaço de rascunho. Não que precisasse calcular preços novamente e, se fizesse, ficaria extremamente desapontado com minhas habilidades com números. Simplesmente, virei a folha pelo avesso. Ali, papel e caneta transformariam pequenas histórias em grandes momentos, personagens em protagonistas. Mas já não eram donos da própria história. A mim, cabia a interpretação que tornaria o café da tarde em versos de poesia. Em minhas mãos trazia o poder de reescrever o próprio destino. Ali, uma arte que não se ensina na escola, mas que transforma um simples homem em escritor.