O dia em que ela foi Ingrid Bergman

Eles eram jovens, belos e eram amigos. Formavam um casal muito bonito. Já se conheciam há alguns anos. Ele era dono de uma Maison feminina elegante e onde vendia também pequenas preciosidades para decoração. Por coincidência, quando ela mudou de cidade ele também mudou para a mesma cidade e se viam com muita freqüência. Certo dia ela disse a ele que estava muito preocupada com o menino que passeava com os cachorros, pois o porteiro, que era parente dos meninos, dissera que ele estava atravessando a avenida com os cachorros. Ele então propôs, Flor, que era como ele costumava chamá-la, vamos fazer o seguinte, eu passo aqui todas as manhãs e nós levaremos os cachorros para passear e vamos aproveitar e levar também as crianças para apanhar sol. E assim ficou combinado. Ele, antes de sair de casa, ligava para acordá-la e algumas vezes perguntava, já tomou o café? E ela respondia, estou me levantando agora. Ele dizia, estou levando pão caseiro quentinho e vamos tomar café junto. A afinidade era tanta que nunca faltou assunto entre os dois. Tagarelavam o tempo todo. Se acontecia dela se atrasar, ele chegava e junto com o empregado da casa pegavam álcool e um pano úmido e passava nos pelos dos cachorros e depois penteavam os dois poodles negros gigantes. Colocavam as coleiras e aí ela já estava pronta com as crianças e saiam para passear. Quando chegou o inverno, ele chegava muito elegante com seus sobretudos impecáveis e echarpes que mais pareciam um chale, de tão grande. Suas botas importadas, sempre muito limpas, impecáveis. Ela vestia as crianças com roupas apropriadas, vestia casacos na menina e sobretudo xadrez no menino., o que o amigo adorava – as duas crianças. Ele costumava dizer que a menina tinha modos de criança da realeza e o menino parecia um lorde inglês. E na hora de atravessar a avenida ele costumava segurar um dos cachorros e a menina ele levava no colo. E a mãe, com o menino pela mão e o cachorro na outra. Do outro lado da avenida eles passavam as crianças na frente e iam atrás com os cachorros. Ele era muito preocupado, cuidava para que as crianças não caminhassem muito na ponta das pedras. Se ventava muito ele tirava a enorme echarpe dele e colocava nas costas dela. Certa ocasião ele viajou e, na volta, trouxe um belo casacão e disse, Flor, esse tem a tua cara; só uma mulher como você pode usar um casaco desses. Outra ocasião ele trouxe umas botas de cano longo e muito macias e disse, Flor é para usar com o casaco. E ela comprava as peças que ele trazia, pois realmente ele tinha muito bom gosto. Ele costumava levantar os ânimos dela e brincava dizendo, se eu fosse um príncipe, faria de ti a minha princesa. E os dois davam muitas risadas. Ela nunca perguntou sobre os afetos dele e ele sabia que ela tinha um casamento ideal. Certa ocasião a vizinha comentou com ela que o pessoal do prédio dizia que ele era o irmão dela, pois eram tão bonitos e até meio parecidos e que era difícil ver dois irmãos tão unidos. Ela ficou aborrecida e respondeu, você sabe que ele não é meu irmão, sabe que eu não tenho irmão e a vizinha respondeu, é melhor que pensem que é. Ela comentou o fato com ele e ele disse que não foi maldade da vizinha, pois eu conheci o senhor seu marido e ela sabe que eu não ofereço perigo algum. E assim eles esqueceram o fato e os passeios continuaram nas três estações do ano, outono, inverno e primavera. Ela adorava aquele amigo tão sensível, tão compreensível e tão elegante. Ele dizia a ela, Flor veja como os carros diminuem a velocidade para nos admirar, nós até parecemos Roberto Rosselini e Ingrid Bergman. Ela achava muita graça na brincadeira do amigo. E, realmente, as pessoas que vinham pelo passeio, quando passavam por eles, paravam para ajustar as roupas ou os tênis. Afinal, o casal chamava a atenção. Um rapagão, uma jovem esposa bonita, dois filhos lindos. Até os cachorros eram de cinema. Ele sabia tudo sobre moda, decoração, história da arte, era muito culto e inteligente. O único defeito dele era que as 12:30 ele deveria chegar em casa dele. Se ela o convidava para ficar para almoçar ele não aceitava o convite e certo dia disse a ela que para poder ficar mais tempo na companhia dela e das crianças, as 06:00 da manhã ele já estava em pé, colocava o pão para assar, fazia o almoço e lavava toda a roupa da casa e que as treze ele servia o almoço. Aí ela perguntou, mas como, isso é escravidão! Ele não tinha necessidade de passar por toda essa humilhação, foi quando ele contou que a Maison pegou fogo e o incêndio fora criminoso, pois um antigo caso do sócio dele, por ciúme dele, mandara incendiar a loja e que eles não puderam sequer receber o seguro. E ficaram prejudicados porque havia duvidas sobre o incêndio. Resumindo, eles sem nada a não ser algumas peças que estavam no estoque e foram salvas, eles dividiram e cada um ficou com uma parte e que o sócio que estava separado da mulher voltou a morar com a mulher e os dois filhos e a casa onde ele estava morando era de um parente distante que acabara de se separar da mulher por ter um outro caso com um rapaz e que a mulher, para se vingar, mandou todos os quatro filhos morarem com o pai. E como o pai dava uma pensão para a ex e a filha que ficou com ela, não tinha como manter um empregado doméstico e ele por sua vez não tinha onde morar. Fizeram um acordo, em troca de moradia ele fazia todos os serviços da casa e que os quatro filhos marmanjos não faziam nada e que a roupa da casa era toda lavada no tanque porque a mulher levou as máquinas de lavar louça e roupa, até o fogão e a geladeira. Foi tudo, na partilha. E como fogão e geladeira ele tinha ele levou para a casa do parente. Algum tempo depois ela disse ao amigo, isto não vai ficar assim, você vai ver. E uns tempos depois ela abriu uma fábrica de roupas e o amigo se transformou em representante, com CORI e tudo. E logo ele já representava outras confecções e saiu de fininho da casa dos parentes para a sua própria casa. Comprou um ótimo apartamento em local nobre e da última vez que se encontraram ele estava muito bem e até adotou um filho, uma criança abandonada. Ela ficou feliz por ele. Como era época de Natal, ela convidou o amigo para passarem juntos as festas, mas ele não aceitou. Disse que tinha outra pessoa e que talvez a pessoa não ficasse muito a vontade, mas agradeceu e foi a última vez que ela viu o amigo. Pelas contas dela, isso foi a uns quinze anos atrás; às vezes ela pensa procurá-lo mas tem medo que algo não tenha dado certo e acha que seria muito difícil para ela saber que o amigo não está bem, mas ela reza por ele porque foi uma amizade especial e, diga-se de passagem, quem teria tanta imaginação a ponto de se sentir um Roselini em companhia de uma Ingrid Bergamn. Só alguém como ele, chic, culto, discreto, elegante e gay. Porque, hoje, ela acha que os homens estão se embrutecendo, não têm educação e sensibilidade. Ela roga pelo amigo. Sente saudades dos passeios deles e, acima de tudo, sente uma felicidade imensa por ter contribuído para que a vida dele se transformasse numa vida melhor. E ela pede que Deus o abençoe.

Nadia Foes
Enviado por Nadia Foes em 05/09/2009
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