ENCHIAMOS OS NOSSOS DIAS COM CONVERSA VAZIA...

De todos os encontros que tive, aqueles eram os mais estranhos. Cruzávamo-nos diariamente, trocando palavras de ocasião, mas nada mais do que isso. No entanto, às 4ªfeiras, encalhávamos ciclicamente à frente um do outro, com uma enorme vontade de nada dizer. Eu gostava do seu rosto invulgarmente belo, ela ainda não soube o que encontrou ela em mim, encontrávamo-nos apenas, e só por isso fazíamos tema de conversa.

Quando havia chuva, apetecia mais, adorávamos, parecia que ela nos empurrava para isso, talvez para disfarçar-mos a apreensão que nos dominava cada vez que o céu ameaçava cair-nos em cima. Refugiávamo-nos sempre no mesmo café, rindo-nos como tolos, ficando a olhar para os nossos olhos, sem motivo nenhum; não nos amávamos, nem sequer queríamos ter uma aventura de cariz sexual, pois ambos tínhamos alguém, e éramos felizes nessas relação.

Eu e ela éramos apenas amigos, mas nem muito, talvez por isso, enchíamos os nossos dias com conversa vazia.

Sempre procurei nas pessoas um significado, quer nas suas palavras, quer no olhar, e mesmo na própria linguagem gestual. Exasperavam-me as criaturas secas, inertes, frias. Comunicar para mim era uma arte, a dever ser exercida nas suas diferentes variantes, até a encontrar...Descobri então as conversas sem significado, ela gostava de determinadas coisas, que eu, pessoalmente achava...inúteis. Falava dos seus livros de cabeceira, que, para mim, serviam apenas para encher estantes, ou como suporte delas; de programas de televisão, óptimos para combater as poucas insónias que tinha e de muito mais coisas, enquanto eu fazia o inverso, alicerçando-me nas típicas conversas de homens, por defesa, para ela não me conhecer mais do que eu achava necessário, pois falar de carros e de mulheres, além de futebol, apesar de apreciar os dois últimos tópicos, nunca fazia deles motivo de conversa, a não ser para ela, para a manter numa distância necessária…

O engraçado era que essas conversas de mundos, e de pessoas totalmente diferentes, tinham sentido...porventura, devido ao prazer que tínhamos na companhia um do outro, por isso sentíamos que, enchíamos os nossos dias com conversa vazia, mas conversa deliciosa, talvez porque secretamente nos amava-mos, mas como a infidelidade não era o nosso caminho, as tais conversas ocas eram uma forma de estarmos juntos sem contudo pisar-mos um certo risco sensorial…

Temática ou analogicamente, tínhamos a procurar todos os pontos possíveis e imaginários, para os nossos encontros impossíveis, mas, ao fazê-lo, acabávamos sempre por complicar o simples, entravamos em contradição, mas nem assim nos desentendíamos, enchendo os nossos dias com conversa vazia.

Quem nos observava, achava, e com certa razão sermos tolos. Afinal, quem conversava tão apaixonadamente sobre coisa nenhuma? Era coisa de doidos, certamente! Quantos sorrisos condescendentes adivinhei nos nossos “colegas de café” casuais? Muitos, ou então era eu, que, perfeitamente consciente da falta de lógica das nossas horas, o pensava assim, e assim queria que os outros pensassem...

Mas francamente...gostava dela, daquela forma esquisita e especial que se gosta de alguém, pelo menos uma vez na vida. Gostava das conversas, porque sim! Ou talvez não. Ainda hoje, passado tanto tempo, e depois de a rever nas fotografias de curso, sei que nunca chegarei a conclusões. Ainda bem...Ou será que não? Talvez por isso, esteja longe de me arrepender daqueles intermináveis momentos, em que enchemos os nossos dias com conversa vazia.

Até que passado um ano nesta rotina, estando quase a acabarmos os nossos cursos e prestes a partirmos rumo a diferentes pontos do país, e fartos dela dessa conversa vazia, decidimos quase sem palavras irmos para a cama.

Talvez o facto de na altura ter interrompido o namoro e me encontrar temporariamente carente me tivesse impelido para aquela aventura, mas da parte dela…sei que namorava e era feliz com ele, mas nada mais…

E descobrimos que a conversa vazia se esgotou por ali, o interesse ficou numa cama, talvez a conversa sem nexo fosse um preliminar, talvez…

O que é certo é que depois de o termos feito, nunca mais falámos, cruzamo-nos e ainda nos encontrámos em locais comuns, mas o máximo que fizemos foi trocar um sorriso cúmplice e nada mais…

Foi a única vez que fui para a cama com alguém sem motivo aparente, a não ser o físico, e contei tudo à namorada por quem voltei, ela aceitou tal, embora ficasse magoada, mágoa que durou sem palavras e no seu olhar, até o tempo me ter afastado dela…

Baseado vagamente em factos reais, primeiro esboço em 1998, corrigido e alterado em Setembro de 2009

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 04/09/2009
Código do texto: T1792369
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