Passado
Na imensidão, procuro meu rosto em meio a nuvens de fumaça de chaminés acesas das casas. Onde estou? Será que durmo um sono aquecido e tranquilo, ou será que a inquietude ainda permeia minha vida e aspirações? Não, eu não sei que cidade é essa, se é Londres, Innsbruck ou Mainz. Se estou na Alemanha ou na Áustria. Sei que tudo é cinza e a luminosidade é rala e rara. Tempos bem difíceis. Tempos que deveria esquecer.
Ao longe, vejo um gato sapateando no telhado de uma casa velha. A ele, não importa o frio, nem a falta de luz, nem o clima sombrio que paira nesta hora. Para ele, não existe primavera e a vida é um longo inverno que demora demais a cessar.
Resolvo entrar nessa casa, a do gato. Atravesso sua porta e vejo claramente um toco de vela aceso sobre a lamparina da parede. A parca luz me permite vislumbrar os poucos e puídos móveis da casa: a mesa, duas cadeiras, um velho queijo e uma faca. Sobre a lareira, um quadro torto, com rostos que desconheço. Talvez família, senão, ninguém importante.
Ao fundo, um batente de porta e uma janela com os vidros rachados. Espio pela porta e me deparo com um cômodo que, se estou bem certo, é cozinha e banheiro ao mesmo tempo. Estranho.
Uma outra porta leva ao único quarto da casa. E, na cama, deitado, dormindo, me encontro, alheio a tudo no mundo. Estou diferente, não sou alto, tenho uma estatura mediana, cabelos pretos e, diria que um pouco sujos. Estou à vontade, quer dizer, ele que sou eu está. Eu estou totalmente incomodado e não vejo a hora de sair daqui. Essa vida não me pertence mais e o que eu tinha de aprender com ela espero ter aprendido.
Dizem que quando voltamos no tempo, quer seja em sonho ou até mesmo acordado, é porque conseguimos acertar um dos erros de nosso passado. Acredito nisso, pois não quero voltar mais lá, naquele período obscuro e sem destino.
Eu sei que aquele homem, que era eu, morreu poucos dias depois. Estava moribundo e não tinha ninguém a cuidar dele. Todos tinham ido embora. Era a peste e assim, como ele, muitos morreram naquela época.
Velhos tempos. A nossa história hoje é outra. Mas os nossos medos e agruras são os mesmos. O que fazer para nunca mais passar por tudo aquilo? Ter fé e acreditar que o melhor ainda está por vir. E eu sei que virá, senão eu também estaria em uma cama, esperando a única certeza da vida chegar...
Poesia publicada no livro Viver: um jogo perigoso,
de Márcio Martelli, Editora In House (2009).
Na imensidão, procuro meu rosto em meio a nuvens de fumaça de chaminés acesas das casas. Onde estou? Será que durmo um sono aquecido e tranquilo, ou será que a inquietude ainda permeia minha vida e aspirações? Não, eu não sei que cidade é essa, se é Londres, Innsbruck ou Mainz. Se estou na Alemanha ou na Áustria. Sei que tudo é cinza e a luminosidade é rala e rara. Tempos bem difíceis. Tempos que deveria esquecer.
Ao longe, vejo um gato sapateando no telhado de uma casa velha. A ele, não importa o frio, nem a falta de luz, nem o clima sombrio que paira nesta hora. Para ele, não existe primavera e a vida é um longo inverno que demora demais a cessar.
Resolvo entrar nessa casa, a do gato. Atravesso sua porta e vejo claramente um toco de vela aceso sobre a lamparina da parede. A parca luz me permite vislumbrar os poucos e puídos móveis da casa: a mesa, duas cadeiras, um velho queijo e uma faca. Sobre a lareira, um quadro torto, com rostos que desconheço. Talvez família, senão, ninguém importante.
Ao fundo, um batente de porta e uma janela com os vidros rachados. Espio pela porta e me deparo com um cômodo que, se estou bem certo, é cozinha e banheiro ao mesmo tempo. Estranho.
Uma outra porta leva ao único quarto da casa. E, na cama, deitado, dormindo, me encontro, alheio a tudo no mundo. Estou diferente, não sou alto, tenho uma estatura mediana, cabelos pretos e, diria que um pouco sujos. Estou à vontade, quer dizer, ele que sou eu está. Eu estou totalmente incomodado e não vejo a hora de sair daqui. Essa vida não me pertence mais e o que eu tinha de aprender com ela espero ter aprendido.
Dizem que quando voltamos no tempo, quer seja em sonho ou até mesmo acordado, é porque conseguimos acertar um dos erros de nosso passado. Acredito nisso, pois não quero voltar mais lá, naquele período obscuro e sem destino.
Eu sei que aquele homem, que era eu, morreu poucos dias depois. Estava moribundo e não tinha ninguém a cuidar dele. Todos tinham ido embora. Era a peste e assim, como ele, muitos morreram naquela época.
Velhos tempos. A nossa história hoje é outra. Mas os nossos medos e agruras são os mesmos. O que fazer para nunca mais passar por tudo aquilo? Ter fé e acreditar que o melhor ainda está por vir. E eu sei que virá, senão eu também estaria em uma cama, esperando a única certeza da vida chegar...
Poesia publicada no livro Viver: um jogo perigoso,
de Márcio Martelli, Editora In House (2009).