SÉRIE: MULHERES DO BRASIL – A CARINHOSA
O cenário era de um Hospital. Estávamos na recepção do Posto de Urgência, aguardando a vez de ser atendido. O motivo fora simples: uma forte dor que sentia no peito e estava me incomodando. O que seria? Quis checar para ter mais tranqüilidade. Minha esposa acompanhou-me. E o tempo passando. E a gente ali parado, à toa, aguardando sabe-se lá o que...
Falta de médico de plantão? Poucos consultórios de atendimento? Excesso de burocracia? Fornecimento precário de medicamentos? Funcionários públicos desleixados? Ausência de calor humano e de sensibilidade para compreender a dor e o problema do outro? Qual era a razão da lentidão no atendimento eu ainda não havia descoberto, mas o fato era que a recepção estava abarrotada de gente, com todos os lugares, mais de cinqüenta, tomados, pessoas em pé pelas paredes e gente nos corredores, sem contar a pequena multidão que se aglomerava inquieta pelo lado de fora, causando congestionamento humano na porta de entrada da emergência do Hospital.
Talvez devêssemos culpar os brasileiros por ficarem muito doentes, por se envolverem em muitos acidentes... Se brasileiro fica doente demais, se machuca demais, a culpa não é só dos cidadãos, mas, também, do governo que não oferece saneamento básico; estrutura habitacional adequada; urbanização suficiente, com rua, encanamento, rede de esgotos, áreas de lazer bem estruturadas; sinalização correta do trânsito; contenção de encostas; proteção das áreas de risco e tudo o mais necessário para uma vivência saudável nas áreas urbanas e rurais.
Mas, não estou aqui para falar dos problemas do Brasil. Meu propósito é falar dela, a carinhosa. O fato é que a demora no atendimento me fez observar os vários tipos da fauna humana que ali acorreram. E foi nesta observação desavisada, não programada, que a divisei. Uma senhora quarentona, mas já desgastada pela vida. E, sua filha, uma jovem aparentando ter seus dezoito para dezenove anos. A cena que vai se descortinar à minha frente me enterneceu e não posso me furtar de descrevê-la.
Antes, porém, preciso traçar as características principais de cada personagem que compõe este cenário terno e carinhoso que me surpreendeu. Como disse, havia uma mãe e uma filha. E nas duas, um contraste que saltava aos olhos: a mãe era uma mulher normal; a filha uma jovem feia de dar dó! A mãe também não era bonita, mas, para uma mulher de sua idade, curtida pelos embates da vida, não se cobrava beleza, mas, desempenho como esposa, mãe e cidadã. E é desse jeito, pelo avançar da idade e a afirmação da personalidade, que os feios ficam belos, ou, pelo menos, normais.
Mas, da filha, uma garota recém entrada na juventude, moça casadoira, no frescor dos anos, esperava-se algo mais. Um atrativo qualquer que servisse de inspiração e provocasse olhares apaixonados. Examinei-a de alto a baixo. Rebusquei cada recanto daquele corpo. Detive-me em seu rosto. E o que vi não me agradou. Estava difícil; difícil mesmo. Era realmente uma garota muito feia.
Bem, feia para mim. Feia, talvez, para todos os homens contaminados por uma certa estética ocidental de beleza. Feia até para uma grande maioria de mulheres que não conseguiriam encontrar qualquer encanto naqueles traços femininos minguados. Mas não para sua mãe! Para mãe, filho é filho. E filho é sempre belo. Mesmo quando feio de morrer, como aquela infeliz que estava ali na recepção do Hospital, disponível aos meus olhares desconfortáveis.
E Dona Jurema, a carinhosa, honrou a fama das mães. Exemplificou o amor de mãe, ao acolher em seu regaço sua filha jovem, feia de dar pena, mas em quem fazia carinhos desmesurados, carinhos ternos e afetuosos, distribuindo também olhares zelosos, enquanto aguardava o chamado do enfermeiro de plantão.
A carinhosa levara a filha jovem, que sofria de algum mal, além da feiúra, para atendimento médico. E, enquanto esperava, por obra e graça (ou seria desgraça?) dos desacertos da Saúde no Brasil, deu demonstração clara e inequívoca de que aos olhos das mães seus filhos são sempre os mais lindos, os mais belos, e mesmo não o sendo, tornam-se com o carinho que lhes devotam.
A cena foi simplesmente bela. As duas, mãe e filha, sentadas lado a lado. A filha, reclinada largadamente sobre os ombros da mãe e, depois, deixando sua cabeça escorregar lentamente para o colo da progenitora. Enquanto isso, no embalo da ternura, Dona Jurema fazia-lhe carinhos na face, aplicava um cafuné reconfortante na filha e olhava com doçura a cria que, dengosa, gozava da proteção materna no decurso de algum mal que lhe acometia, mas que não fora possível identificar, mesmo com as contrações faciais e certo ar de desassossego que volta e meia a sacudia.
Dona Jurema, naquela circunstância hospitalar, era o carinho em pessoa. A carícia emanava dela. Nunca vi demonstração de carinho tão marcante e significativa como aquela ali presenciada. Se não saí curado do corpo, por conta do mal estar sentido; saí curado da alma, por conta da lição de vida que Dona Jurema, a carinhosa, me deu naquela tarde...