A BRANCA ESPUMA DESTE MAR CRUEL

Romilda coçou a perna com o dedão do pé. Parecia aquela ave que dentro d'água faz crer que tem uma perna só. Seria uma garça? Certamente não, aquela criatura desengonçada estava mais pra socó. As costas apoiadas no batente da porta, olhava pra longe enquanto lançava pelo nariz a fumaça do cigarro que mantinha entre os dedos com a mão afastada do corpo como se apontasse para o chão. Sua respiração era quase imperceptível e fazia o magro peito, muito exposto pelo decote ousado, apresentar um leve e entrecortado movimento. Sua pele era de um marrom acinzentado, colada sobre os ossos. Grandes olhos saltavam daquele rosto alongado, boca de lábios fartos e dentes alvos. As moscas faziam rodopios e zumbezumbes em torno de um tonel onde o lixo já se derramava e cheirava mal. A velha casa fora outrora habitação confortável e distante da cidade e agora, decadente, parecia estranha no meio das casinhas que erguiam-se ao sabor do que os moradores iam encontrando em locais de construção ou de materiais surrupiados aqui e acolá, contando com os descuidos alheios.

Zé Maconha apareceu esfregando os olhos com as costas da mão e olhou direto pra ela, parando de repente. Deu um enorme bocejo e ergueu os braços para espreguiçar-se. Era um rapaz magro, alto e de uma cor muito pálida, com negras olheiras sob os olhos verdes. Já passava das onze da manhã, mas muita gente por ali estava dentro das casas, pensando em que fazer com este novo dia, com sua fome, necessidade imediata e inadiável, catando os restos do dia anterior se os havia, bebendo o último gole do refri no bico do litrão, sob o protesto de quem chegara atrasado.

-Já viu lá os bagulho? falou o Zé.

- Já... e não me óia assim, tá? Não vai faltá nenhum... eu guardei no lugá de sempre. E o Turco e o Gago disseram pra tomá cuidado, que se você bobeá eles ferram contigo.

O rapaz fez uma careta, passou por ela com um empurrão:

- Aaaiiii, Zéeee ...gritou esganiçada. Tentou equilibrar-se e virou o pé direito que desceu dos altos tamancos muito surrados e ficou colado ao chão, os dedos enfiados por baixo da tira e a cepa de sola pro ar... Teve que se abaixar para ajeitar o pé e ao levantar ouviu uma buzina de carro. Era o primeiro freguês.

Uma moça de óculos escuros, longos cabelos bem cuidados, enfiou a cabeça pra fora da janela e chamou:

-Ei, você, o Zé tá aí? Já tem a minha encomenda? E diante do olhar da outra que nem se mexeu, foi descendo e se aproximou, olhando para trás e para os lados. A bolsa cara denunciava a classe social, já que o carro era comum para despistar qualquer perigo de assalto. Entretanto ali apareciam carros de todos os tipos, trazendo ocupantes ansiosos, nervosos e sem muito amor pela vida.

Começava a romaria que ia varar a madrugada até que as instâncias do vício chegassem ao fim e o expediente diário naquele local ermo então encerrasse mais um dia de atividades.

Romilda tinha uma função de soldado raso naquela hierarquia dos negócios do pó, enquanto Zé podia ser considerado um cabo em início de função. Cabia a eles um ponto de venda e muito do que ganhavam já era gasto em seu próprio vício. No consumo da cocaína, muito dinheiro descia de pontos altos da pirâmide social direto pra base, e na mesma velocidade, voltava a subir para o ponto de partida. Pois os dois eram um pequeno sinal em um corpo, cuja cabeça estava a anos luz daquela miséria.

O rapaz enfiou a cabeça pela fresta de uma pequena janela e com olhar indiferente viu a moça aproximar-se, já enfiando a mão pra dentro da bolsa, apressada.

- O de sempre, falou ela, erguendo os olhos para ele.

Num instante, a troca foi feita, dinheiro prum lado, cocaína pro outro. Enfiou tudo em um pequeno cofre. O som metálico da porta fechando seria ouvido dali pra frente como choro de carpideira, igual, repetido, prolongado por muitas horas.

Zé Maconha apesar de seus vinte e poucos anos apenas, já tinha um histórico de prisões. E uma de suas façanhas era que, ao receber certa vez o indulto de Natal, cheirou todas, arrumou um cavalo ninguém sabe onde, e galopou como doido por uns campos próximos a sua casa aonde nem chegou a entrar. Um gaudério extemporâneo solto das patas?

Já eram duas da manhã quando finalmente tudo foi serenando e só se ouviam latidos de cachorros e os gritos da Dona Amélia a xingar o marido que chegava bêbado como sempre. Romilda dormia num velho sofá, os pés jogados pra fora com sinais visíveis da poeira do dia. Zé sentado no batente da pesada porta, fumava o seu baseado olhando a lua que revelava impiedosamente aquele quadro surreal de habitações e natureza mal acabados. Um carro surgiu no beco tinindo. Zé somente ergueu-se e já tombou. Agora ia cavalgar pra sempre em estâncias desconhecidas.

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 02/09/2009
Reeditado em 07/09/2009
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