UMA NOITE, UM SONHO, UMA VIDA
“Os anos ensinam muitas coisas
que os dias desconhecem.”
(autor desconhecido)
Os olhos se abriam lentamente. O feixe de luz que invadia o banheiro tentava banhar o seu corpo. Ele estava num limbo, o limiar entre seus últimos sonhos e o momento em que suas pestanas, forçosamente, entreabriram-se.
Luz, câmera: ação! Naquela noite, um de seus sonhos parecia um filme. Seu carro voava pelas largas avenidas da cidade, último volume, Pink Floyd, Nobody Home, estremecendo até sua mandíbula. Já em outro, saltava de um teco-teco.Teria quase um minuto antes de abrir o paraquedas. Em queda livre, cortava o ar com grande habilidade; cortes precisos, alguns tortos, outros cegos, naquele céu vermelho-sangue.
Lembranças que se passaram em segundos. Aos poucos, sua mente voltava, contudo seus olhos preferiam focalizar a janela do banheiro. Encontrava-se numa banheira, num apartamento de hotel (dizem os boatos que aquele apartamento é adorado por Dalton Trevisan); nunca esperava estar numa situação dessas (o medo).
Nas paredes, o revestimento perfeito de azulejos quadriculados, com diferentes tons de um marrom-esverdeado. No teto, um retângulo de gesso com as bordas arredondadas. A bancada branca ao lado da banheira, em cima de um armário de imbuia, carregava, como numa espécie de simbiose, uma cuba estilizada – daquelas que muitos não sabem usar. Há alguns graus abaixo de seu ângulo de visão parece ter visto um telefone, mesmo não tendo movido o pescoço nada.
Um aparelho de telefone sob um pequeno banco conectado por uma longa extensão. Colado ao aparelho tinha um bilhete: “Ligue urgente, nº...”. O homem, de aproximadamente cinquenta anos, o arrancou. De imediato se lembrou da noite anterior, assim como do bar, das bebidas e daquela mulher conhecera. Amor à primeira vista? (O frio!)
Envolvente! Essa era a definição. Para ele, era linda, esplendorosa. Ao apartamento do hotel pensou em levá-la; logo depois, já o fazia, com um sorriso sedutor no rosto, sem ao menos pensar consistentemente nisso. Sua intenção era pegá-la, devorá-la. Ela insistiu “mais uma dose, por favor, beba comigo!”. “Uma dose, sim! Uma dose com gelo” – Respondeu.
E os dois se embriagam um pouco mais. Não percebeu que havia algo mais na bebida. A experiência sucumbiu. Um golpe. "Boa noite!", ela sussurrou.
Adormecido, o filme começou, ao estilo Tarantino. Cirurgião, enfermeira, auxiliares, anestesista, material para transplante. Muitos cortes; cortes precisos, alguns tortos, outros cegos, e aquela cor vermelho-sangue. Antes de deixarem o quarto, tudo limpo, esterelizado. Só restou o homem deitado na banheira, com o corpo encoberto de gelo e o telefone ao lado.
E os seus olhos evitavam olhar para seu corpo, inerte. Preferia admirar o pequeno feixe de luz que entrava pela janela do banheiro e que duramente tentava invadir aqueles poros quase fechados.
Sem querer, relembrou um de seus sonhos – aqueles, que mais pareciam filmes.