ALMA GEMEA - 3ºPARTE
Motoristas em pânico ficavam estáticos na abordagem espalhafatosa, teve uma que precisou levar umas sacudidas para que saísse da inércia, vidas estavam em jogo, não podia ser tolerado qualquer atraso, quando alguns viram os para-médicos correndo na frente da ambulância e batendo nos carros para que tomassem atitude e saíssem da frente, se puseram a correr junto com eles para ajuda-los, e mais e mais motoristas abandonavam seus carros e corriam gritando para que o caminho fosse liberado, até o da ambulância já batia ferozmente com a mão aberta na porta, para chamar atenção e gritava com praticamente a cabeça do lado de fora.
Transuentes impressionados com toda aquela movimentação, se solidarizaram e em poucos minutos a avenida inteira estava tomada. Quando aquele cortejo maravilhoso passou em frente a um quartel da policia, o comandante ordenou que seus homens dessem apoio e ajudassem a organizar o transito, dezenas de soldados a pé e a cavalo invadiram a avenida para ajudar a ambulância no resgate, ou melhor o transito, ou talvez tumulto, ninguém mais sabia o que estava acontecendo.
Era tanta gente que o transito ia ficando para trás bloqueado por cones colocados pela policia para que ninguém de carro seguisse atrás do cortejo(?), temiam um acidente. Religiosos rapidamente se organizavam e começaram entoar suas musicas, os umbandistas trouxerem seus tambores e convocaram no asfalto a ajuda de seus mentores espirituais, não podia faltar os hare-Krishna dançando, cantando e tocando seus pandeiros, chocalhos e atabaques e falando que amavam todo mundo de repente entra na procissão, sim já era uma procissão, católicos com suas velas e seus santinhos, fora os judeus, muçulmanos falando do paraíso, budistas e toda uma sorte de religiosos de todo tipo, até evangélicos berrando nos ouvidos dos outros para espantar os demônios.
E a sede e a fome foi marcando presença, não podiam faltar e vieram uma dezena ou talvez centenas de ambulantes com seus carrinhos, bandejas, caixas térmicas para engrossar ainda mais o cortejo, procissão, passeata, ou sei lá o que, com água, refrigerantes, cervejas e churrasquinho de “gato” e sanduíches de todo tipo. Se o motivo não fosse o sinistro, dava até gosto de ver tantos credos juntos orando, rezando, vibrando, mentalizando cada um expressava como sabia seu amor ao próximo e a (seu) Deus.
A ambulância agora era praticamente um trio elétrico arrastando uma multidão de fé pela avenida, helicópteros da policia, particulares e até mesmo da imprensa faziam seu show a parte e até ONGS de movimentos pela paz, anti-racismo, ecológicos e dezenas de outras marcaram sua presença com todo mundo vestido de branco carregando faixas e cartazes e de mãos dadas formando uma corrente.
Agora o transito dava passagem para a ambulância com dezenas de motoqueiros com suas buzinas, deixando para traz toda aquela manifestação. Não tinham todas as informações só sabiam que havia vitima de arma de fogo.
E bem longe dali em uma praça
Folhas do outono tomavam conta das calçadas, e a noite mal dormida pesava nas sobrancelhas de Ruthe, estava com Marcelinho e o vai e vem das folhas ao sabor do vento a hipnotizava e na primeira tentativa das enormes pupilas verdes, esmeralda, serem cobertas inclinou-se e fez um movimento rápido, jogando a imensa cabeleira negra para trás em ondas de charme sobre seu corpo e atraindo para se olhares de outros olhos que tentavam encontrar com os seus, que fitam o horizonte enquanto caminha serena pela praça, afastando de se qualquer intenção de troca de olhares. Sentada em um banco próximo encontra Sueli, sua vizinha que morava no mezanino de seu prédio.
— Vocês viajaram?
— Uma viagem rápida, fomos ao enterro de um parente dele.
— Morreu de que?
— Parou o carro para dar socorro a um motorista que tinha batido o carro, e quando ia saindo para o hospital, veio um caminhão e o acertou em cheio, e matou os dois.
— Ele deve estar arrasado.
— Pois é mas a vida continua e ele já foi trabalhar.
E o celular de Ruthe toca.
— Alô.
— (?).
— O que?
— (?).
— Deve ser engano.
— (?).
— Ele não teve tempo de chegar no serviço.
— (?).
Deixa a mão com o celular cair sobre o seu colo, e desolada olha para Sueli e...
— Pedro levou um tiro.
— Ele não estava no ônibus?
— Só pode ser engano!
.................
E o outono foi levado junto com as folhas abrindo espaço para o inverno, por algum motivo eles se sentiam protegidos da violência, trabalhando para minimizar suas ações. Era justo! — Qualquer um menos a gente — Torturava-se Ruthe em silencio, quando via que a ela tinha entrado dentro de sua casa.
Meses se passam e agora descia com Marcelinho agasalhado, Márcia e Luiz alem de vizinhos tornaram-se grandes amigos. E quando chegou a primavera o telefone toca e ela ao atendê-lo não sabia como se expressar, como? Chorar de tristeza ou rir de felicidade. Estavam avisando que tinha chegado. — Eu tenho que assumir isso! — gritou loucamente, aproveitando o minuto de solidão, era a encomenda mais esperada e repudiada ao mesmo tempo, por ela e talvez por ele e a teria que receber. E logo depois do almoço a campanhia toca, ela atende e se dirige ao banheiro e bate na porta.
— Chegou!
Fica imóvel, aguardando resposta, e segundos se passam, desejar o indesejável...
— Graças a deus, eu sei muito bem o que você esta pensando, isso vai me dar independência, dignidade e a tão sonhada liberdade... Ninguém pode mudar as coisas, mas pode se adaptar e eu só preciso que você aceite.
— Quanto a isso eu acho que nos demos provas suficientes de superação em muitas coisas.
E de dentro do banheiro um grito de felicidade invadiu o coração de Ruthe era tudo que esperava ouvir, pegou a caixa e colocou no quarto. Dias se passaram e Pedro enfim depois de muita fisioterapia, pode ficar em pé novamente, sem as muletas que tanto o incomodavam, pois no outono havia levado um tiro de fuzil logo abaixo do joelho e isso provocou uma amputação. Uma prótese era tudo que precisava.
E no verão, num belo dia de sábado Ruthe o vê sorrindo a toa quando chega em casa e lhe pergunta.
— Ei! Ganhou na loteria?
— E sem jogar.
— Como assim?
— Hoje eu estava dando aula e de repente me chega três garotos que também sofreram amputação e agora, vou montar um time.
— São daqui?
— Devem ser, me viram com a minha prótese e perderam a vergonha, e agora são meus alunos e ainda me disseram que tem outros
— Uma vez professor sempre professor.
— Agora tem um que só movimenta o braço e a mão direita e quer ser juiz.
— Qual o problema?
— O problema é a cadeira...
Claro, um juiz tem que observar todos os ângulos avançar e recuar imediatamente.
— E se o assento girasse?
— Independentemente das rodas?
— E com velocidade e poder de arranque.
— Vai dar certo!
— O mesmo para os bandeirinhas, só que eu acho que a bandeira tem que ser escamoteada na cadeira para serem acionadas de acordo com a necessidade.
E gritaram juntos...
— Vai ser o maior barato!
E assim ficaram os dois rascunhando o projeto e já pensando em um patrocinador noite a dentro e depois rolou pipoca uns beijos, abraços, e...
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Ah, quem era o garoto da cadeira de rodas outra vitima da violência; seu pai um ladrão de bancos foi metralhado com toda sua família por causa de uma briga entre eles. Ele foi o único que sobreviveu, e ainda teve um quadraplégico que virou assistente do Pedro e um outro com paralisia cerebral, ficou responsável pelos uniformes e um monte de Down que torcia.
E uma porrada de outros na administração, bilheteria, marketing e os cadeirantes que não podiam faltar como gandulas, e todo mundo foi convidado para o casamento do Pedro e Ruthe com um maravilhoso coral de deficientes visuais acompanhados por uma banda fantástica de músicos surdos e mudos e um padre maneta.
DiMiTRi
9/4/2007 17:54