CADÊ O DEFUNTO?...
"O Lídio Morreu!..." A trágica notícia corria de boca em boca,invadia os botecos, e em poucos minutos a rua do Fomento inundara-se do ocorrido.Não tardou e atingiu também a nossa casa ,numa tarde quente de setembro,tomando de sobressalto meu pai que aproveitava o feriado do dia da independência confeccionando um tear para minha mãe.
De queixo caído,literalmente,não se conformava com o que acabara de ouvir.Amigo inseparável de Lídio,seresteiros que foram quando jóvens,eram agora velhos parceiros de jogos de baralho.Combinavam-se em tudo e a unica diferença que os distanciava um pouco era a de que Lídio bebia demais;meu pai, nem socialmente.
Inconformado,lamentando-se e fazendo um discurso contra a cachaça,como todo bom interiorano que se preza,começou a preparar-se para velar o seu finado amigo.Barba feita,cheiroso,um maço de velas no bolso do paletó,eis que surge pelos fundos da casa a figura de dona Hilda,minha mãe,trazendo consigo azaléias recém-colhidas formando o que na sua concepção era "um buquê"!
Com todo respeito,aquilo mais parecia uma vassoura,um fardo...Uma coisa enorme e exagerada que podia ser qualquer outra coisa,jamais um buquê.
À mim,todo cheiroso,cabelos lambidos,calça com friso e tudo o mais à que se tem direito em indumentária para estas ocasiões,coube a incumbência de abraçar-me ao colorido "fardo" e acompanhar o amigo do finado.No fundo eu estava até sentindo-me feliz.O lugar para onde iríamos era um dos prediletos em minhas andanças.A distância a ser percorrida ,cêrca de uns tres quilometros aproximadamente,faria com que cruzássemos porteiras,coxilhas e capões de mato nas terras de dona Maria Fillus que faziam divisa com os Rodrigues da Anunçiação,família à qual pertencia o falecido.A divisa dava-se na parte mais elevada do terreno,onde Silvestre,o patriarca da família,havia dividido em pequenas glebas as suas terras e doado à cada um de seus onze filhos.Êstes construíram casas não muito distantes do casarão do pai,formando uma espécie de vilarejo que ficou conhecido por Vila dos Silvestres.
À minha visão de menino aquilo era um verdadeiro reino encantado!...O monjolo de farinha de milho junto à uma pequena cachoeira,o barbaquá onde moia-se a erva mate,o gado,os cavalos,as cabras e os caquiseiros de dona Percília ,enfileirados,feitos soldados gigantes,punham-se como fiéis defensores da propriedade.Rever aquilo tudo na agradável companhia de meu pai,era o que apenas me interessava.Quanto ao falecido...Bem,aí já era outro assunto.
À pé,tomamos o rumo dos campos lavados de sol,cruzamos a primeira porteira e a notícia foi dada à Campolino,capataz de dona Maria.Caboclo de fibra,já bem idoso,muito respeitador...Tirou o chapéu deixando à mostra a calvicie debruada por uma coroa de poucos fios de cabelos brancos marcados pelo suor daquela tarde quente.Inclinou-se levemente,fez o sinal da cruz e encomendou a alma do também seu amigo.Um pouco mais adiante,a casa do outro capataz.Novamente a notícia.Damásio,êsse era o seu nome,apareceu no terreiro em companhia de sua mulher,dona Rosa.Sem demonstrar grande surpresa ou comoção com o fato,lamentou sem muito interêsse,ao contrário da mulher que enxugou na barra do avental algumas lágrimas acompanhadas de lamuriante comentário.-"Pobre Lídio!...Eu o via passar por aqui todos os dias..."Ao que Damásio num tom enfezado complementou:-"Errando passadas pelo vassoural...É nisso que dá ser amante da dita",referindo-se à cachaça.
A partir daí a única parada seria mesmo no local do velório.As floradas do vassoural destilavam ao calor da tarde um adoçicado cheiro de mel que misturado às azaléias resultava num "bouquet" enjoativo.Possivelmente fruto da minha calada irritação em carregar aquêle "braçado" de flores,exagero de minha mãe.Entre zumbidos de abelhas e aquêle cheiro nauzeabundo,vinha pelo vento o som desafinado de uma sanfona.Papai não perdoou...Conhecia bem a origem daquela melodia .Era êle, Emilio,o irmão mais novo de Lídio em sua pequena ferraria com o velho hábito de "uma batida na bigorna e uma "puxada" na gaita".E lá veio o comentário:
_Isso é o fim do mundo!...Onde foi parar o tal do respeito?...O pobre do irmão "na mesa" e o desabusado tocando sanfona...Isso não vai ficar assim,vou dizer -lhe poucas e boas .
A casa de Lídio ,à esta altura, já descortinava-se à nossa vista...As janelas do sótão espiavam por trás dos pessegueiros a imensiidão verde dos campos por onde o gado pastava.Atravessamos o último dos capões de mato,e lá no tôpo; Êle,o Lídio!...Esparramado numa cadeira de balanço,camisa aberta ao peito,o rosto quase escondido na cortina azulada de fumaça do palheiro,um dos pés apoiado no assento ,as calças arregaçadas até a altura do joelho.Solto no calor da tarde...Livre e feliz em sua varanda.
Papai ficou petrificado...Eu pensei em atirar pra longe aquelas malditas flores...A voz de papai determinou entre dentes...-"Não jogue estas flores e nem me abra esta boca...Se comentar qualquer coisa sobre o assunto,te enforco...Tá me ouvindo?"
Balançei a cabeça,afirmativamente.(Teria outra escolha?)
Lídio se antecipa:
_Jango,meu bom amigo!..."Se achegue vivente"..."Vamos entrando que nesta casa cachorro não morde amigo meu!"
Um banco nos foi oferecido. Sentamo-nos proximos de Lídio.O olhar percorria a varanda repleta de latas com samambaias,espadas de São Jorge e outras folhagens.Não demorou para que o "falecido" cheio de curiosidade nos indagasse:-"Mas,diz aí,companheiro,aonde vais com tantas flores?"
Papai,meio gaguejando: Pois é!...São A...A..Azaléias!...Floresceram muitas lá em casa.Hilda, a minha mulher,as mandou para que vocês enfeitem a casa.
Lídio franze a testa,proferindo tão sòmente um gutural:
_Hummmm.....
Aparece a figura de dona Rosa,a quem chamávamos a "Rosa do Lídio",para diferenciar daquela outra Rosa (do Damasio) que haviámos deixado lá pra traz.Um sorrisinho estranho,meio desconfiado,desenha-se em seus lábios.Afinal entre nós,gente do mato, não eram comuns êstes gestos de delicadeza oferecendo-se flores a quem quer que fosse exceto,em velórios,quando tornava-se quase uma obrigação.
Pelo sim,pelo não,acaba convidando-me à acompanha-la.Apanhou algumas azaléias e as colocou num vaso de louça sobre a mesa.Era um vaso com detalhes em dourado onde destacava-se em relevo a figura de um casal de namorados sentados à sombra de uma árvore.O restante,o estoque...O fardo,acabou por colocar num tanque de lavar roupas para conservarem-se mergulhadas na água.
Entabulamos uma conversa na cozinha enquanto na varanda incensada aos palheiros,Lídio e papai falavam amistosamente.
Dona Rosa fritara uns bolinhos de chuva recheados de fatias de banana e tomamos um reforçado café,servido na espaçosa mesa de madeira maçiça coberta por uma toalha xadrez azul e branco.Vez e outra,ela percorria com os olhos as azaléias no vaso de louça e lançava-me um sorrisinho maroto,irônico e desconfiado,de quem tentava decifrar a trama que haveria por detrás daquelas flores.Uma pequena obturação em ouro,luzia,como a insinuar:"Tem caroço nêste angú"...E eu,encabulado,comia mais um bolinho de chuva.
A tarde ia caindo quando papai e eu entramos pela rua do Fomento,levando o desmentido:"Aquêle era o dia em que o Lídio não morreu!...
PS:Êste mico aconteceu em 1959,Lídio veio a falecer (de verdade) na década de 80.
Dona Rosa,hoje quase beirando os 100 anos é uma rocha.Não faz muitos dias avistei-lhe em minha rua.Pena que já havia se distanciado...Pensei com meus botões:"Será que ela a lembra-se das azaléias?...Faz ainda bolinhos de chuva?..."
"O Lídio Morreu!..." A trágica notícia corria de boca em boca,invadia os botecos, e em poucos minutos a rua do Fomento inundara-se do ocorrido.Não tardou e atingiu também a nossa casa ,numa tarde quente de setembro,tomando de sobressalto meu pai que aproveitava o feriado do dia da independência confeccionando um tear para minha mãe.
De queixo caído,literalmente,não se conformava com o que acabara de ouvir.Amigo inseparável de Lídio,seresteiros que foram quando jóvens,eram agora velhos parceiros de jogos de baralho.Combinavam-se em tudo e a unica diferença que os distanciava um pouco era a de que Lídio bebia demais;meu pai, nem socialmente.
Inconformado,lamentando-se e fazendo um discurso contra a cachaça,como todo bom interiorano que se preza,começou a preparar-se para velar o seu finado amigo.Barba feita,cheiroso,um maço de velas no bolso do paletó,eis que surge pelos fundos da casa a figura de dona Hilda,minha mãe,trazendo consigo azaléias recém-colhidas formando o que na sua concepção era "um buquê"!
Com todo respeito,aquilo mais parecia uma vassoura,um fardo...Uma coisa enorme e exagerada que podia ser qualquer outra coisa,jamais um buquê.
À mim,todo cheiroso,cabelos lambidos,calça com friso e tudo o mais à que se tem direito em indumentária para estas ocasiões,coube a incumbência de abraçar-me ao colorido "fardo" e acompanhar o amigo do finado.No fundo eu estava até sentindo-me feliz.O lugar para onde iríamos era um dos prediletos em minhas andanças.A distância a ser percorrida ,cêrca de uns tres quilometros aproximadamente,faria com que cruzássemos porteiras,coxilhas e capões de mato nas terras de dona Maria Fillus que faziam divisa com os Rodrigues da Anunçiação,família à qual pertencia o falecido.A divisa dava-se na parte mais elevada do terreno,onde Silvestre,o patriarca da família,havia dividido em pequenas glebas as suas terras e doado à cada um de seus onze filhos.Êstes construíram casas não muito distantes do casarão do pai,formando uma espécie de vilarejo que ficou conhecido por Vila dos Silvestres.
À minha visão de menino aquilo era um verdadeiro reino encantado!...O monjolo de farinha de milho junto à uma pequena cachoeira,o barbaquá onde moia-se a erva mate,o gado,os cavalos,as cabras e os caquiseiros de dona Percília ,enfileirados,feitos soldados gigantes,punham-se como fiéis defensores da propriedade.Rever aquilo tudo na agradável companhia de meu pai,era o que apenas me interessava.Quanto ao falecido...Bem,aí já era outro assunto.
À pé,tomamos o rumo dos campos lavados de sol,cruzamos a primeira porteira e a notícia foi dada à Campolino,capataz de dona Maria.Caboclo de fibra,já bem idoso,muito respeitador...Tirou o chapéu deixando à mostra a calvicie debruada por uma coroa de poucos fios de cabelos brancos marcados pelo suor daquela tarde quente.Inclinou-se levemente,fez o sinal da cruz e encomendou a alma do também seu amigo.Um pouco mais adiante,a casa do outro capataz.Novamente a notícia.Damásio,êsse era o seu nome,apareceu no terreiro em companhia de sua mulher,dona Rosa.Sem demonstrar grande surpresa ou comoção com o fato,lamentou sem muito interêsse,ao contrário da mulher que enxugou na barra do avental algumas lágrimas acompanhadas de lamuriante comentário.-"Pobre Lídio!...Eu o via passar por aqui todos os dias..."Ao que Damásio num tom enfezado complementou:-"Errando passadas pelo vassoural...É nisso que dá ser amante da dita",referindo-se à cachaça.
A partir daí a única parada seria mesmo no local do velório.As floradas do vassoural destilavam ao calor da tarde um adoçicado cheiro de mel que misturado às azaléias resultava num "bouquet" enjoativo.Possivelmente fruto da minha calada irritação em carregar aquêle "braçado" de flores,exagero de minha mãe.Entre zumbidos de abelhas e aquêle cheiro nauzeabundo,vinha pelo vento o som desafinado de uma sanfona.Papai não perdoou...Conhecia bem a origem daquela melodia .Era êle, Emilio,o irmão mais novo de Lídio em sua pequena ferraria com o velho hábito de "uma batida na bigorna e uma "puxada" na gaita".E lá veio o comentário:
_Isso é o fim do mundo!...Onde foi parar o tal do respeito?...O pobre do irmão "na mesa" e o desabusado tocando sanfona...Isso não vai ficar assim,vou dizer -lhe poucas e boas .
A casa de Lídio ,à esta altura, já descortinava-se à nossa vista...As janelas do sótão espiavam por trás dos pessegueiros a imensiidão verde dos campos por onde o gado pastava.Atravessamos o último dos capões de mato,e lá no tôpo; Êle,o Lídio!...Esparramado numa cadeira de balanço,camisa aberta ao peito,o rosto quase escondido na cortina azulada de fumaça do palheiro,um dos pés apoiado no assento ,as calças arregaçadas até a altura do joelho.Solto no calor da tarde...Livre e feliz em sua varanda.
Papai ficou petrificado...Eu pensei em atirar pra longe aquelas malditas flores...A voz de papai determinou entre dentes...-"Não jogue estas flores e nem me abra esta boca...Se comentar qualquer coisa sobre o assunto,te enforco...Tá me ouvindo?"
Balançei a cabeça,afirmativamente.(Teria outra escolha?)
Lídio se antecipa:
_Jango,meu bom amigo!..."Se achegue vivente"..."Vamos entrando que nesta casa cachorro não morde amigo meu!"
Um banco nos foi oferecido. Sentamo-nos proximos de Lídio.O olhar percorria a varanda repleta de latas com samambaias,espadas de São Jorge e outras folhagens.Não demorou para que o "falecido" cheio de curiosidade nos indagasse:-"Mas,diz aí,companheiro,aonde vais com tantas flores?"
Papai,meio gaguejando: Pois é!...São A...A..Azaléias!...Floresceram muitas lá em casa.Hilda, a minha mulher,as mandou para que vocês enfeitem a casa.
Lídio franze a testa,proferindo tão sòmente um gutural:
_Hummmm.....
Aparece a figura de dona Rosa,a quem chamávamos a "Rosa do Lídio",para diferenciar daquela outra Rosa (do Damasio) que haviámos deixado lá pra traz.Um sorrisinho estranho,meio desconfiado,desenha-se em seus lábios.Afinal entre nós,gente do mato, não eram comuns êstes gestos de delicadeza oferecendo-se flores a quem quer que fosse exceto,em velórios,quando tornava-se quase uma obrigação.
Pelo sim,pelo não,acaba convidando-me à acompanha-la.Apanhou algumas azaléias e as colocou num vaso de louça sobre a mesa.Era um vaso com detalhes em dourado onde destacava-se em relevo a figura de um casal de namorados sentados à sombra de uma árvore.O restante,o estoque...O fardo,acabou por colocar num tanque de lavar roupas para conservarem-se mergulhadas na água.
Entabulamos uma conversa na cozinha enquanto na varanda incensada aos palheiros,Lídio e papai falavam amistosamente.
Dona Rosa fritara uns bolinhos de chuva recheados de fatias de banana e tomamos um reforçado café,servido na espaçosa mesa de madeira maçiça coberta por uma toalha xadrez azul e branco.Vez e outra,ela percorria com os olhos as azaléias no vaso de louça e lançava-me um sorrisinho maroto,irônico e desconfiado,de quem tentava decifrar a trama que haveria por detrás daquelas flores.Uma pequena obturação em ouro,luzia,como a insinuar:"Tem caroço nêste angú"...E eu,encabulado,comia mais um bolinho de chuva.
A tarde ia caindo quando papai e eu entramos pela rua do Fomento,levando o desmentido:"Aquêle era o dia em que o Lídio não morreu!...
PS:Êste mico aconteceu em 1959,Lídio veio a falecer (de verdade) na década de 80.
Dona Rosa,hoje quase beirando os 100 anos é uma rocha.Não faz muitos dias avistei-lhe em minha rua.Pena que já havia se distanciado...Pensei com meus botões:"Será que ela a lembra-se das azaléias?...Faz ainda bolinhos de chuva?..."