Caminhando pelas ruas
Caminhando pelas ruas
O caminho vai ser longo. Minha velha mania de fazer cálculos mentais está me avisando: demorarei meia-hora, aproximadamente. Nunca fui muito fã de matemática, mas adoro cronometrar e contar. Falando nisso, eu já deveria ter esperado a cara de espanto da moça à minha frente na, aparentemente infindável, fila de cadastro de quarta-feira passada:
- Você é a número noventa e sete.
- Acha, mesmo?
- Sim. Contei.
Nunca fui um cara muito metódico, porém cercado de manias e artifícios para espantar o tédio. Eu devo boa parte da minha famosa paciência a essas idiossincrasias mentais, deduzindo perfis de estranhos avistados e enumerando seqüências de pouca serventia. Assim sendo, estou novamente a olhar as horas. Já andei por nove minutos, demorados o bastante para pensar numa ótima forma de me distrair enquanto sigo à passos rápidos: Além de conversar com meus neurônios, narrando esse roteiro do passeio em minha cabeça, cá estou a desenrolar os fios do fone de ouvido que, até então, estava enfiado no bolso.
É surpreendente como uma trilha sonora faz-me acelerar a marcha. Sendo fã das playlists randômicas, não interferi na música, inesperada, que se reproduziu ao pressionar o botão. Os compassos quebrados de “Master of puppets” estão desentrosados de meu ritmo constante, o qual seria cômico se fosse acompanhar exatamente cada desenho desse mosaico sonoro.
Agora estou tomando o nítido conhecimento do vigor que adquiri, ao som do solo de Kirk Hammett, passando rapidamente pela mulher que, minutos antes, havia passado por mim com facilidade. Não pude deixar de reparar em como ela é atraente. Calça de tecido leve e elástico, colada ao corpo, exibindo suas formas torneadas; pescoço exposto; cabelo preso e postura imponente, com andar largo e ligeiro. Sendo, eu, nada exibido ou intrometido, ela já está pra trás, sem conversa ou flerte.
Agora sim. Passo pela rodoviária ao som de Slayer, costurando as pessoas pelo ponto de ônibus, sem análises ou contagens. Apenas reefs, solos, pedal duplo, pratos, baixo... Barulho! Na velocidade distraidamente acentuada em que estou passando, só vejo manchas no lugar das faces, escutando nem me atentando a nada além das canções empolgantes. Se algum conhecido tentou um aceno, nada vi ou ouvi. Já estou mais que na metade do caminho e não há sinais de tédio ou cansaço. Nem sequer posso saber se o som da minha respiração denota-me como ofegante, pois nada capto do mundo exterior aos fones.
Neste exato momento estou reparando meu engano. Se realmente nada tivesse a espantar da frente de meu ímpeto por dar mais “alguns passos”, por que estaria, eu, a continuar essa entediante reprodução cerebral de meu percurso? Respondendo a mim mesmo, eu diria que, independente de ser necessidade de me exorcizar da preguiça ou não, é o que está me mantendo afastado do passo arrastado e martirizante.
Sepultura. Rolling Stones. As músicas passam e estou chegando. Com Kreator na trilha, já estou na cabeceira de minha rua.
Esta campainha precisa de bateria nova. Está demorando a tocar. Preciso apertar mais forte. Enfim, funcionou. É ruim não ter a cópia da chave.
Agora posso descansar, pois estou precisando. Muita coisa à fazer. Pra resolver tudo, disposto, vou ter que intercalar entre afazeres importantes e digitações diversas para me distrair. Acho que vou escrever algo sobre meu dia.