Seca e Cheia

Água.

É o princípio de toda a vida, é o que seu pai lhe dizia sempre, narrando os enredos de criação do mundo e de como Tupã criou tudo o que se conhece.

Juatirri se lembrava disso e tentava compreender como a água, ou a falta dela pôde tirar a vida de seus pais e de tantos outros que ribeirinhos, como ele, aprenderam a amar o grande rio e a depender das águas, mas é mesmo a ausência das coisas que a apaga a vida e assim a "Seca" como um monstro terrível e incompassivo veio outro ano sugar a multidão das águas ilhando os ribeirinhos, dessa vez o monstro "Seca" foi mais voraz do que usualmente e os seus foram minguando ali, sem comunicação, sem mantimento, sem socorro... alguns lugares apenas sucumbiram e morreram a míngua até que de novo Tupã se compadeça e mande mais águas. Juatirri conhecia esse inimigo feroz e assolador conhecido por seca, mas pra Juatirri a seca era apenas ausência, era vazio o inabitado e isso ele temia, como temia também o escuro ou a mera falta de luz, duvidava de que qualquer coisa fosse tão bonita quanto o dia iluminado pelo sol que descorinava um quê de vida sobre tudo que há. O que não é, dá medo.

Nasceu ali, às margens do Rio Vaupés (um braço do Rio Negro), e vivia ali até aquele ano quando seus pais vitimados pela seca também deixaram a vida.

"Sem água não há vida", então era verdade, seu pai lhe dissera a verdade, sim porque só a verdade vitalece e é também capaz de matar.

Agora ele estava sendo levado dali e sabia que também estava um pouco morto.

Juatirri foi levado por um barco de misericórdia, socorrido por um grupo de assistentes sociais de uma instituição de caridade, mas pensava que caridade mesmo teria tido Tupã se lhe houvesse levado ou se lhe devolvesse as águas e os seus pais na chuva.

Levaram-lhe para Manaus e lá lhe deram por casa um orfanato.

Tudo que Tupã chamou à existência através da água, Juatirri viu na ausência de águas morrer. Ele não podia entender. Na verdade não queria.

Deram-lhe roupas, comida, uma cama, mas de tudo que havia ali apenas um presente agradou a Juatirri, era uma folha em branco, ele já havia compreendido que o vazio podia matar e entendeu que aquilo precisava ser preenchido imediatamente, aprendeu a desenhar, se apaixonou pelas cores e o giz, começou a pintar e nunca mais quis permitir nada vazio diante de seus olhos.

Aquilo lhe movia e naquilo ele era muito bom, ganhou algum renome, algum dinheiro e muitas, muitas telas vazias...

Ele sentiu, viveu, amou... um dia se achou vazio também.

Sujou-se de tinta como qualquer uma de suas telas, ele se encheu de desejos e se lambuzou do que por aí chamam "pecados", tudo enfim pra não se permitir o vazio.

Fazia canções para preencher o silêncio.

Bebeu, se drogou com várias coisas, mas sobretudo bebeu... e bebeu muito.

Se lançou em tudo quanto descobria ter alguma cor, um colorido que fosse para preencher cada lacuna que via em si ou no mundo.

Assim, Juatirri descobriu num dia que a "cheia", assim como a "seca" também é capaz de matar. E morreu assim, afogado em suas cores.

Ingrid Fernandes
Enviado por Ingrid Fernandes em 24/08/2009
Código do texto: T1772136
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