O ¨Status¨ de Andar de Ônibus
Certos acasos nos acometem como a nos libertar de amarrações e tendências que enraizamos. Criamos hábitos que se tornam como cascas, evitando sair de nossas zonas de conforto, custe o que custar. Vi-me, graças a uma série de confluências astrais, obrigado, depois de alguns pares de dezenas de anos a pegar um ônibus urbano.
Sem querer, seja pelo carro na oficina, pela sugestão do funcionário:
- A linha vai passar quase na sua porta.
– Pensei em um táxi. – Respondi.
- Que táxi?! – Bradou indignado, pensando por mim. O senhor nem vai notar a diferença e, a essa hora, não tem ninguém circulando. Tentando escapar da saia justa:
- Não tenho nem ¨sit-pass¨.
- Esquenta não. No ponto aqui em frente o sujeito ali vende. Já deve estar quase passando um, experimente.
Sem saber ao certo o que fazer, fui ao ponto, mas decidido a pegar o primeiro táxi. Para meu azar, lá veio o ônibus e o funcionário colou em mim.
- Não falei? É só subir nesse. – Comprei a passagem e entrei no veículo. O funcionário na calçada, triunfante. Odeio gente metida a prestar bons serviços. No mínimo ele deve ganhar alguma comissão. Ainda estava sob o efeito do trauma da semana passada (leia nossa crônica sobre a gripe suína) e temi pegar naqueles altos corrimões amarelos. No primeiro arranque a precaução passou: se eu não me seguro cairia estatelado.
Aquelas dezenas de anos longe da lotação fizeram-me um bem incrível, acreditava dentro do casulo da minha purgante arrogância. Achei o veículo novo, limpo, espaçoso e moderno. Havia luzes por todo lado. Sobravam assentos, pelo menos àquela hora. O motorista foi atencioso e eu realmente teria que andar poucas quadras até a minha casa. Carregava um livro de poesias da Cecília Meireles, que nem precisei ler. Preferi admirar as ruas da minha cidade sem o stress de estar ao comando do volante. Saboreei com o gosto da infância aquela redescoberta.
Quando um passageiro queria descer, apertava um dos vários botões alaranjados nos corrimões. Um painel escrito ¨parada solicitada¨, educadamente iluminava-se e um agradável alarme era emitido. Nada que lembrasse a antiga cordinha ou as desagradáveis campainhas do meu tempo de estudante. O pior era quando não funcionavam. A gente saia no berro:
- Para o ônibus! – O motorista freava bruscamente com os passageiros se esmagando uns contra os outros. Diante da viagem fantástica, resolvi que voltaria pela mesma linha para buscar o carro, dois dias depois. Passagem na mão, peguei a linha novamente vazia, após 20 minutos de espera, que quase me fizeram tomar um táxi.
Sentei-me calmamente pronto a ler Cecília. O veículo foi enchendo, visto também ir ao Campus. Em pouco tempo estava lotado, com direito a criança de colo chorando, briga de passageiro com o motorista por que o bilhete não passava e alguns suores, além de odores estranhos. Fiquei agoniado. E se alguém espirrasse? O terror da gripe suína voltara. Vi a dificuldade de uma mulher gorda comprimindo-se na catraca. Ainda não somos uma sociedade que pense nas minorias, apesar de alguns progressos. De bom, ouvi os estudantes comentando:
- A aula de ontem foi horrível.
- Mesmo?
- Demorou uma eternidade...
Uma outra jovem desfiava a uma amiga:
- Ontem minhas clientes vieram. Vendi bastante...
São pequenos ¨flashes¨ de vidas paralelas que nos fazem perceber que participamos de uma grande família, de um todo maior. Jamais imaginei que aquele contato com pessoas que não conhecia me enriqueceria ao coletar impressões humanas que nos são tão caras, e que aos poucos abandonamos, na pressa de viver trancados em nossas redomas acolchoadas. Apertei o botão alaranjado e aquele mundo se fechou assim que pisei na calçada, bem em frente à oficina. Meu carro me esperava com seu ar-condicionado, com o motor silencioso, calibrado, pronto a me furtar daquela realidade que o status de classe-média afastara. Acelerei o motor e a redoma ganhou o tráfego, lamentavelmente...
Certos acasos nos acometem como a nos libertar de amarrações e tendências que enraizamos. Criamos hábitos que se tornam como cascas, evitando sair de nossas zonas de conforto, custe o que custar. Vi-me, graças a uma série de confluências astrais, obrigado, depois de alguns pares de dezenas de anos a pegar um ônibus urbano.
Sem querer, seja pelo carro na oficina, pela sugestão do funcionário:
- A linha vai passar quase na sua porta.
– Pensei em um táxi. – Respondi.
- Que táxi?! – Bradou indignado, pensando por mim. O senhor nem vai notar a diferença e, a essa hora, não tem ninguém circulando. Tentando escapar da saia justa:
- Não tenho nem ¨sit-pass¨.
- Esquenta não. No ponto aqui em frente o sujeito ali vende. Já deve estar quase passando um, experimente.
Sem saber ao certo o que fazer, fui ao ponto, mas decidido a pegar o primeiro táxi. Para meu azar, lá veio o ônibus e o funcionário colou em mim.
- Não falei? É só subir nesse. – Comprei a passagem e entrei no veículo. O funcionário na calçada, triunfante. Odeio gente metida a prestar bons serviços. No mínimo ele deve ganhar alguma comissão. Ainda estava sob o efeito do trauma da semana passada (leia nossa crônica sobre a gripe suína) e temi pegar naqueles altos corrimões amarelos. No primeiro arranque a precaução passou: se eu não me seguro cairia estatelado.
Aquelas dezenas de anos longe da lotação fizeram-me um bem incrível, acreditava dentro do casulo da minha purgante arrogância. Achei o veículo novo, limpo, espaçoso e moderno. Havia luzes por todo lado. Sobravam assentos, pelo menos àquela hora. O motorista foi atencioso e eu realmente teria que andar poucas quadras até a minha casa. Carregava um livro de poesias da Cecília Meireles, que nem precisei ler. Preferi admirar as ruas da minha cidade sem o stress de estar ao comando do volante. Saboreei com o gosto da infância aquela redescoberta.
Quando um passageiro queria descer, apertava um dos vários botões alaranjados nos corrimões. Um painel escrito ¨parada solicitada¨, educadamente iluminava-se e um agradável alarme era emitido. Nada que lembrasse a antiga cordinha ou as desagradáveis campainhas do meu tempo de estudante. O pior era quando não funcionavam. A gente saia no berro:
- Para o ônibus! – O motorista freava bruscamente com os passageiros se esmagando uns contra os outros. Diante da viagem fantástica, resolvi que voltaria pela mesma linha para buscar o carro, dois dias depois. Passagem na mão, peguei a linha novamente vazia, após 20 minutos de espera, que quase me fizeram tomar um táxi.
Sentei-me calmamente pronto a ler Cecília. O veículo foi enchendo, visto também ir ao Campus. Em pouco tempo estava lotado, com direito a criança de colo chorando, briga de passageiro com o motorista por que o bilhete não passava e alguns suores, além de odores estranhos. Fiquei agoniado. E se alguém espirrasse? O terror da gripe suína voltara. Vi a dificuldade de uma mulher gorda comprimindo-se na catraca. Ainda não somos uma sociedade que pense nas minorias, apesar de alguns progressos. De bom, ouvi os estudantes comentando:
- A aula de ontem foi horrível.
- Mesmo?
- Demorou uma eternidade...
Uma outra jovem desfiava a uma amiga:
- Ontem minhas clientes vieram. Vendi bastante...
São pequenos ¨flashes¨ de vidas paralelas que nos fazem perceber que participamos de uma grande família, de um todo maior. Jamais imaginei que aquele contato com pessoas que não conhecia me enriqueceria ao coletar impressões humanas que nos são tão caras, e que aos poucos abandonamos, na pressa de viver trancados em nossas redomas acolchoadas. Apertei o botão alaranjado e aquele mundo se fechou assim que pisei na calçada, bem em frente à oficina. Meu carro me esperava com seu ar-condicionado, com o motor silencioso, calibrado, pronto a me furtar daquela realidade que o status de classe-média afastara. Acelerei o motor e a redoma ganhou o tráfego, lamentavelmente...