Insónia

Ao compasso das brisas de outono, com vento e folhas no desalinho das auroras, apetecem pouco os frios pingos da chuva. Sair ou ficar a ver o tempo pelo embaciado da janela são opções que restam para contornar a insónia. Acordei com o rumor das águas no telhado e com a resposta dos cães a adivinhar desgostos. O café saber-me-ia a poção para as revoltas do estômago e o naco dourado da broa acabaria por não servir na minha fome. Há alturas em que só o tédio pode confundir-se com ambíguos apetites. Ir, ficar ou voltar ao quente da cama envolta na penumbra de um quarto minimal, sem que nada disto se defina, como que a tentar-me com desafios.

Abracei-me para impedir o entorpecimento e ali fiquei, esquecido, à espera de quem pudesse surgir sob a luz do poste eléctrico. Ninguém se moveu nesta paisagem mutante de sons abafados, latidos e silêncios. A torre sineira deu horas. Cinco? Seis? Que importância tem isso, neste esvair de sombras, se o dia ainda tarda? Vi-te. Unias-te à parede da casa velha e, envolta nas balançadas sombras do carvalho, seguiste como se, também tu, nada mais tivesses para cumprir que um rodar sem rumo. Todos temos dias assim. Por uma ou outra razão, esvazia-se-nos o espírito e fica-se à mercê de qualquer pensamento, como se o corpo não passasse de um barco de emoções vagas a querer sair para o largo e a tolher-se no medo da aventura.

Claro que te conhecia da rua, da Praça, das pugnas com a gente miúda do Cais, na lota. Sabia-te das formas redondas sob o xaile a embiocar-te o rosto, a cruzar argumentos no gritado dos negócios. Eras mais uma das jovens que pleiteavam o controlo das pescarias, como empresária que não precisa fazer acertos ou acordos, por ser de fora da vila e, porque sim. Respeitavam-te o gesto, a ousadia e a certeza do ganho, nos lances. Quando saías, mil sussurros saudavam a tua beleza agreste. Uns receavam que não voltasses e sentiam antecipadas saudades; outros, certos de que te veriam sair do azulão desbotado do carro, dividiam-se entre o prazer de te ver e a raiva da competição. Com rigor, nada se sabia a teu respeito e eu não era excepção por muito que os meus olhos se embevecessem na tua figura a um tempo sólida e esguia. Comandavas os homens na tarefa das cargas e dos pagamentos, como se não os visses, como se fossem estranhos peões de um jogo que só tu dominavas. Defendias-te?

Salto deste emaranhado de pensamentos para o amanhecer do dia em que te vi, apeada, sem a usual convicção. A princípio só te segui com o olhar mas, depois, com a incontrolável vontade de saber o que fazias, quem na verdade eras, como funcionavas longe das multidões. Fiquei a ver-te. Nem a chuva forte te impediu a lentidão da caminhada. Dir-se-ia que estavas incapaz de sentir os elementos da invernia ou que procuravas neles alívio. Como pude acercar-me de ti, impor-te a minha presença, forçar-te ao diálogo? Devo ter percebido que a mulher poderosa e cheia de determinação, nessa madrugada, não estava contigo. Que outra justificação haveria para o facto de não me teres escorraçado? E soube coisas te ti. Perguntei e tu contaste, como se nada mais importasse, como se, de repente, te preparasses para desaparecer na bruma. Tive medo. Não nos expomos tanto com quem se não conhece, a menos que, no instante seguinte, se apaguem as memórias dos relatos e tudo fique, sem risco, sem efeito, a boiar no esquecimento. Nome, idade, morada, isso não disseste. O resto sim. Há quem faça conversa com cães e gatos, às vezes até com as plantas e os pássaros. O importante, sublinhaste, é travar o poder maligno das palavras. Daí que tivesses calado as referências, aquele mínimo de coordenadas que me permitissem não perder-te, nunca. Resististe. Afinal, nem verdade nem lógica existem para lá dos sonhos e o que nos ligou, apenas por raras horas, não passava disso, certo? O café, o cigarro, o jeito manso de acariciar as mãos, o brilho dos olhos pousados na aflição com que recolhi as tuas confidências, tudo isso, afinal, acabou por se perder quando regressaste ao pleno controlo da tua vida. Aquela madrugada nunca floriu, mas deixou marcas profundas. Reapareceste, poucos dias depois, mas já não eras igual. Apesar do carro azul e do teu modo, tão celebrado, de vencer na lota. Sem o aroma daquele particular encontro, nem tu nem eu ou os outros, passamos de gente comum sob a tirania de vidas opacas. Quando o ar se veste de névoas e a serra some para os lados de Setúbal, adivinho-te a subir a Arrábida.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 15/08/2009
Reeditado em 03/05/2015
Código do texto: T1755822
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