Para o futuro

Bate em minha cabeça um tum tum tum de idéias que chegam e se instalam mansamente a me exigirem que escreva. E eu obedeço. Afinal quem sou eu para recusar tal ordem?
É que o poeta, quando se instala, apodera-se de meu corpo numa fúria que nem sempre reconheço. Ele veda-me os olhos e passo a enxergar o nada. Eu nada vejo, nada temo e, o principal, eu nada sou!
O poeta põe-se a escrever sobre mundos e vidas que não são minhas, mas que se revelam a cada sílaba, descortinando emoções, até então ocultas dentro da solitude de minha alma.
Então, quando posso e me é permitido, respiro.
Paro e respiro. Paro e olho ao redor, com os olhos que voltam a ser meus, nem que sejam por uns mínimos segundos.
Ele me olha e insiste na minha volta ao papel. Eu respiro e teimoso, mas já cedendo, volto a escrever sobre aquilo que não controlo.
Sei que um dia, já mais velho diria, vou sentir a ausência deste amigo, pois ele irá embora, assim como eu irei um dia. Só que restarão as memórias, os livros que foram escritos sobre este tempo e dos quais terei orgulho de ter sido um instrumento potencial.
E quando me for, simplesmente, trancarei a porta do meu quarto, para que, um dia, alguém a abra. E pode ter certeza de que estarei lá por perto para ver tudo isso acontecer.


Texto publicado no livro Sangue: literatura e outras loucuras,
de Márcio Martelli, Editora In House (2008).