RESISTÊNCIA

O lençol branco estava remexido. Travesseiros ao chão expunham alguém que gostava de flores, uns eram de estampas de rosas, outros sutis folhas de jasmim.

A cama desfeita estava fazia e no banheiro ouvia-se somente o som do chuveiro e no ar um frescor de sabonete de fragrâncias campestres.

A casa silenciosa parecia que ainda não acordara e no quintal apenas o latido do cão brincando com uma bola abandonada por alguma criança descuidada.

Do acabateiro, única árvore que sobrara de um pomar de tempos atrás, frutos secos pendiam com o vento, e no chão outros tantos caídos e não removidos serviam de adubo à terra fértil.

Aquela moradia, modesta e pintada com tinta à cal, tinha um quê de familiar e, no entanto, estava ali, no meio de um imenso quarteirão ocupado por grandes prédios luxuosos e imponentes. E seus moradores, luxuosos e imponentes, vindos de outras partes da cidade àquele empreendimento, desconheciam os moradores daquela modesta casa.

O cão que latia abandonara a bola e se dedicava a um gato persa que fugira do apartamento 101 como em tantas outras vezes acontecera.

A rua que noutros tempos era de terra e servira de campinho para a molecada ter seus embates futebolísticos, transformara numa avenida cheia de bares e um comércio que se especializara em arranjos de flores. A pequena padaria de tempos passados tornara-se conhecida por seus pães, doces, bolos e a simpatia de seus empregados. Tinha nas paredes fotos do bairro e dos antigos donos. E os novos, seus herdeiros, eram os responsáveis por aquela mudança fazendo-a capa de uma reportagem sobre as transformações da cidade.

A pesca, antes feita no rio ali próximo, cedera lugar para as idas ao supermercado de uma rede estrangeira. E a alameda de casas, antes ocupadas por imigrantes italianos, deixou de existir para que se construísse uma estação do metrô

Assim o bairro, como um adolescente que chega a maioridade e assume seus riscos, transformara-se numa pequena cidade que, como o sangue que oxigena o corpo durante sua vida, precisava de dedicados cuidados.

O lençol branco remexia na máquina e sobre a cama outro estava caprichosamente esticado. Os travesseiros, tirados do chão, repousavam sobre o parapeito da janela para receberem raios de sol.

O som do chuveiro não se ouvia mais, e o cão que se esquecera do gato resgatado por sua dona, dava pulos de alegria ao ver Dona Glória, senhora de 90 anos, que nascera e crescera naquela humilde casa e era a pessoa mais antiga do bairro. E naquele dia, cuja avenida estava toda enfeitada com flores e bandeirinhas coloridas, Dona Glória ia ser homenageada na câmara de vereadores, ocupada por antigos garotos que antes jogavam bola na rua.

silvio lima
Enviado por silvio lima em 09/08/2009
Reeditado em 09/08/2009
Código do texto: T1744429
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