Como café amargo
Sentada na beirada da sua sacada, com os pés em meias quentes pendurados no vão do parapeito, ela pensava. Passara o dia todo enchendo sua já bastante preenchida cabeça de bobagem. Agora precisava esvaziá-la do desnecessário e deixar ali apenas o que precisava digerir. Esperara pela noite ansiosa e pacientemente. Sabia que só depois do relógio marcar meia noite e todos na sua casa e vizinhança se recolhessem é que ela poderia fazer o que tinha de ser feito.
Naquela manhã mudara o cabelo, as roupas, a maquiagem. Agora que o céu estava negro ela precisava organizar seu coração.
Mesmo gostando do silêncio que a madrugada lhe propiciava, resolveu preencher os ouvidos com algum som que lhe acalmasse. A música lhe fez chorar. Há muito tempo que não chorava.
De repente um enorme peso foi retirado das suas costas e ao fim da primeira melodia do seu mp4, suas faces já eram lavadas por lágrimas de medo, alívio, raiva e frustração.
Mas o bolo na sua garganta ainda não descia. Sentia frio sozinha na varanda e desejou alguém para abraçá-la forte e sussurrar-lhe no ouvido que tudo ficaria bem. Mesmo ela sabendo que isso seria uma grande mentira.
Fechou os olhos e tentou respirar fundo. Desejou um cigarro, mas o mesmo pensamento lhe alertou que devia parar de fumar. Desejou então um grande copo de algo quente e alcoólico, pra afogar suas mágoas e seus pedidos de não-vida. Porém teve de contentar-se com a xícara de café que levava consigo.
Bebericou o líquido escuro muito amargo. Não adoçara de propósito. Ele iria descer queimando, rasgando, doendo, como tudo sempre lhe descera garganta a baixo pela vida. No mesmo momento veio o desespero e a incrivelmente forte vontade de desistir. A voz começou, lá no fundo de sua mente, a atormentá-la novamente. Ela dizia sempre a mesma coisa: “Você não consegue, não adianta tentar...eles sempre serão mais fortes, eles sempre vão te derrubar...abaixe a cabeça e obedeça!Não há nada que você possa fazer, nada.”
Tremeu de frio ao mesmo tempo em que afastava o pessimismo do primeiro plano de suas lembranças. Fora assim em todos os vinte e três anos da sua existência. Aquela maldita voz na sua consciência dizia-lhe para recuar e ela obedecia. Mais de uma vez perdera grandes oportunidades, mais de muitas vezes perdera pessoas importantes por ter medo de correr atrás e quebrar a cara. A voz lá dentro sempre a fizera ficar na defensiva. Já havia tentado algumas muitas vezes mantê-la longe,já prometera a si mesma que não a escutaria mais. Mas quando as coisas apertavam... a voz sempre lhe dominava.
Mas a partir daquela noite as coisas seria diferente. Na noite dos sues vinte e quatro anos ela sabia que era a hora de ser forte e acabar de uma vez por todas com aquilo que a controlava. Foram duas décadas infelizes, sem amigos, sem namorados, sem oportunidade. Era muito e agora ela sabia o que fazer. Não podia deixar que uma única falha, um único e pequeno erro anos atrás, estragasse toda a sua existência. Sentiu vergonha de si mesma por ter se fechado num casulo e assumido o papel do leão da Doroti. Agora que lhe davam uma opção, ela ia fazer uma escolha melhor. Toda uma vida evitando a doa havia transformado-a numa pessoa machucada, ferida, infeliz.
O café passou rápido pelo seu esôfago, e ainda queimava quando chegou ao estômago. Mas ela quase nem sentia dor física, seu pesar era moral, psíquico. Foi como se algo morresse dentro dela, assassinado pela sua própria criadora, que findara o sofrimento com um último ponto final.
Já não chorava mais, esvaziara. Sentia-se como uma pluma no vácuo, como se nada mais pudesse lhe atingir. Era um sentimento que a muito não experimentava, e não se recordava de ter sentido assim tão forte alguma vez na vida. Os olhos borrados se fecharam quando ela sorriu. E ela suspirou quando percebeu que o sorriso, verdadeiro depois de tantos anos, não provocara a volta da voz que tanto lhe atormentara. Percebeu que se assim quisesse, sua covardia não voltaria a lhe atrapalhar.
Ao se jogar na cama para dormir foi dominada por uma felicidade que não sabia existir dentro do seu coração. Era a sensação de se afogar num mar de chocolate... Sufocante porém confortável. Enrolou-se nas cobertas com os fones ainda nos ouvidos. Não que ouvisse o que a pessoa cantava dentro do seu tubo auditivo, mas a música lhe preenchia um espaço que ela sabia que teria de aprender a preencher. O da voz que já não existia mais.