E acendo mais um cigarro… - Crónica dos tempos que poderão vir... -

É de madrugada, madrugada em que faço sessenta anos, madrugada de um dia perdido em 2025, e eu estou acordado na magia em que as pessoas da minha idade dormem pouco, e eu que sempre gostei de madrugadas posso agora aproveitá-las como aproveito os dias, dado bastarem-me 3h de sono para ficar como novo…

E acendo mais um cigarro…

Como novo…este pensamento ilusório dá-me ainda mais inspiração e no velho teclado do computador perfeitamente anacrónico escrevo mais umas linhas…

Vivo um momento de quase apoteose com o cabal reconhecimento da minha escrita e à beira de receber mais uns prémios. Francamente este momento devia ter chegado quando tinha vinte e poucos anos, altura em que viveria melhor estes momentos, esta quase total ovação.

Apesar de ter começado a escrever na adolescência, nos loucos anos 70, só por volta dos 45 anos é que me tornei num autor requisitado, de tal ordem que tive de deixar de trabalhar e dedicar a minha vida à escrita, vivendo a partir dai uma série de acontecimentos tais que voltei às noitadas e aos múltiplos casos amorosos que duravam apenas semanas, tal como nos meus vinte anos, devido à minha forma nómada e errática de ser…O curioso é que a fama atraiu uma série de personagens que de repente fizeram de mim o seu ponto de referência…. Desde amizades de liceu, às de faculdade, e a outras que fiz ao longo da vida, mas das quais perdi o contacto, além de antigos amores falhados que mal viram o meu nome a ganhar projecção se aproximaram de mim, quando antes mal me ligaram…Não fui nem ingénuo nem parvo e muito menos inocente e aproveitei essas amizades para dar ao mundo a ideia que era um tipo social, ao qual nunca faltava companhia para os eventos sociais e literários para os quais fui desde então solicitado, e usei e descartei os amores oportunistas, porque precisava de amor para me saciar e porque ao meio da noite sempre me apeteceu falar com alguém e esses amores serviam às mil maravilhas para tapar esse buraco afectivo em mim.

Depois de te ter amado, perdido, novamente amado e novamente perdido, pensei na altura que te aproximarias de mim…Já não te via há quase 10 anos e essa era a ocasião ideal para te aproximares, mas não o fizeste directamente, apenas vinhas a sessões de autógrafos, trocavas palavras de ocasião comigo e nada mais, não foste nem temporária nem permanente, foste simplesmente tu…

Claro que preferia ter-te aqui comigo desde sempre, claro que tudo poderia ter sido diferente, claro que podíamos ter constituído família e eu ser um pai (e se calhar agora avô), mas algo falhou sempre entre nós…

Agora…não abandonei a vida boémia, apesar do aviso dos médicos, bebo apenas menos e fumo como se o mundo acabasse amanhã, pois de facto acaba para começar no dia seguinte…

Os meus amores e desamores continuam transumanticos, e eu aprendi a ser feliz porque me mentalizei que devido a certas características da minha personalidade, serei sempre um homem mais ou menos solitário…

Tenho saudades tuas, tenho pena de não ter uma vida mais calma, mas houve um ponto na minha vida em que tudo poderia ter mudado, mas não mudou quando não me aceitaste e ficaste com outra pessoa.

No fundo dos meus copos ou à tona deles, na profundidade da minha escrita noctívaga e da minha lucidez diurna continuo a amar-te e amar-te-ei para sempre, sendo que como sabes a maior parte da minha obra desde que te conheci há quase 40 anos é te dedicada…

O mundo mudou, o verão agora é Inverno e o Inverno verão, a primavera existe apenas nas minhas palavras e de outros sonhadores, fomos a Marte, dominamos o espaço, as guerras são curtas e cada vez morre menos gente à custa delas pois utilizamos autómatos para as fazer, aprendi a ser feliz na irrisão total dos meus sentimentos, não me transformei num cínico amargo apesar das imensas amarguras porque passei, continuo a ser um sonhador, e serei até ao fim, e acima de tudo amo-te…

Tenho de voltar para a escrita, pois já está anunciada mais uma novidade, embora só a tenha começado há dias, mas o entusiasmo do meu editor é tal que anunciou aos meios de comunicação social que o livro sai daqui a meses, quando se calhar demoro mais um par de anos a acabar mais um livro, a continuar a minha carreira literária cuja receita de sucesso ignoro, pois não fiz concessões e escrevo como sempre escrevi, com tons de sonho, amor imaginação delirante mas verosímil ao mínimo e de fé inabaláveis, lugares comuns, mas o que são sucessos literários que não lugares comuns abençoados e alinhavados pela Deusa Fortuna do sucesso misterioso da vontade concomitante das massas?

É tarde demais para quase tudo, menos para viver e escrever, tusso que nem um desalmado, o fumo um dia mata-me, mas não me importo já com quase nada…

Amo-te

E acendo mais um cigarro…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 05/08/2009
Reeditado em 06/08/2009
Código do texto: T1738029
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