Estranho, muito estranho...
Anabela considerava-se uma mulher feliz no casamento, uma vida sem muito luxo, com conforto, alguns prazeres e o marido que amava. Cada um cedia um pouco e assim, a vida em comum era permeada de pequeninas discussões que logo acabavam aumentando a cumplicidade do casal. Uma olhadela e o outro já sabia do que se tratava.
Os anos passaram.
Num belo dia, aconteceu uma coisa estranha. Adamastor chegou do trabalho a noite e disse à Anabela que havia acontecido uma coisa muito chata e que seria melhor que ela soubesse por ele e não pelos outros. Contou com uma “facies” sem expressão que uma antiga namorada ficou esperando ele sair de uma loja para entregar-lhe uma rosa. Contou também que ela tinha um misto de pavor e pressa e seus cabelos estavam desarrumados. Que ela jogou-lhe a rosa de encontro ao corpo e que a dita acabou caindo no chão e que ele teve que ajuntar para jogar no lixo porque ela já havia saído às pressas.
Anabela paralisou.
Adamastor continuou com a epopéia de impropérios saindo de uma boca cujo rosto continuava sem expressão. Nem que sim e nem que não. Não deu as costas, quem a fez foi Anabela que pediu a gentileza para que ele parasse de falar tanto nome feio. Enquanto seguia em direção ao banheiro, a cabeça a mil, Adamastor foi atrás com uma declaração de amor que havia algum tempo não fazia: “Te amo Anabela”.
Anabela quase parou de pensar no assunto, mas alguma coisa dentro dela dizia para que tomasse cuidado, afinal, são anos e anos de um relacionamento de confiança, de fidelidade, de ponderações e de crescimento juntos. Faziam muitas coisas junto.
Ficou cansada da estranheza do fato e foi dormir sem dizer uma só palavra. Pensamentos vinham em turbilhões, desde as primeiras coisas, algumas palavras, o local do acontecimento, a rosa. Porque a rosa? Era algum sinal de amor ainda, depois de tantos anos? Tantos anos? Será que aconteceu algum rompimento “depois” do casamento? Anabela nem dormiu.
Levantou-se com o sol nascendo, colorindo com as suas nuances de amarelo e branco, com alguns tons de azuis no horizonte a sua mente enegrecida pelo estranho fato ocorrido, quando? Nem lembrava quando Adamastor disse que havia acontecido isso, poderia ter sido a cinco anos atrás, o que tornaria o fato bem pior e fez com que a sua cabeça latejasse violentamente; tomou uma aspirina e pôs-se a pensar que se de fato houvesse acontecido alguma coisa, essa coisa apareceria mais cedo ou mais tarde. A verdade sempre aparece, não importa quando. Mas até que não aparecesse, ficaria se martirizando? E se fosse uma coisa banal, exatamente banal?
Os homens possuem uma maneira diferente da mulher de expressar sentimentos e contar acontecimentos, muitas vezes contam em 2 minutos um assunto que para as mulheres durariam semanas. Anabela começou a relembrar o caso ponto a ponto, brigando com a memória, para que ela não colorisse ou retocasse o acontecido ao seu bel prazer. A memória é uma arma perigosa.
Anabela procurou ser paciente e fria, analisando os fatos como nunca fez na vida, enquanto tomava a decisão de não tocar no assunto com ninguém. Talvez contratasse um detetive particular ou talvez fosse uma banalidade. Quem era essa mulher que depois de tantos anos, jogaria uma rosa assim, sem mais nem menos? Sem abrir a boca? Adamastor tinha o dom de engolir diálogos quando contava algum caso, e nesse caso deve ter engolido todos os diálogos. Se é que existiu algum.
Os anos passaram.
Num belíssimo dia ensolarado, enquanto Anabela e Adamastor estavam no jardim vendo os netos brincarem, ela disparou a pergunta que engolira a mais de 25 anos:
- Você teve um caso com aquela mulher da rosa?
- Que mulher da rosa?
- Aquela, que naquele dia, esperou você sair de uma loja e entregou-lhe uma rosa e saiu correndo.
- Hahahahaahahahaha
- O que foi? Porque está rindo Adamastor?
- Mas que bobagem você estar falando sobre uma coisa que aconteceu a mais de 25 anos atrás, eu nem lembro o que te falei.
- Mas eu lembro. Fale de uma vez.
- Ciúmes.
- O que?
- Ciúmes de você.
- O que?
- É. Foi uma brincadeirinha para ver se você ficava com um pouco de ciúmes de mim. Nunca teve mulher, nem rosa, nem pedidos de perdão.
- Pedidos de perdão?
Estranho, muito estranho...