O casamento
Ela está sentada - pernas entreabertas, vestido estrategicamente bagunçado deixando as coxas à mostra e “acidentalmente” um pouco da calcinha (vermelha). Decote descaradamente aberto expondo os seios - bagunça o cabelo, tira os óculos, pega a colher que ficou esquecida sobre o que restou do pote de sorvete e dá uma risadinha olhando para a tela da TV, apesar de não fazer a menor idéia de que programa está passando, não importa, desde que o “alarme improvisado” funcione – é preciso outra risadinha, desta vez um pouco mais alta - funcionou:
O marido, de costas para o sofá em que ela se encontra, trabalha em algo inútil no “maldito computador”. Ouve a risadinha e se vira – para a TV, não para ela, que acabara de entrar num estado de desespero silencioso. Sem entender o motivo de tanta risada, ele a olha de relance, sem prestar muita atenção.
“É a minha deixa”, pensa ela e então, lambe a colher de sorvete, lentamente, fingindo-se distraída com a TV. Joga uma das pernas sobre o braço do sofá (como fazem as atrizes pornôs, praticamente um exame ginecológico) e ele...
Bom, ele não volta para a “porcaria importantíssima” em que estava trabalhando. Ele para - olha fixamente para ela, para aquele “quadro recém pintado” como quem acaba de chegar em meio a um espetáculo, tentando entender “o que diabos eles querem dizem com isso?”
Acontece que ela é tão convincente em seu papel – de distraída - que ele acredita e volta ao trabalho. E ela ri, agora não mais um riso forçado - ela gargalha - sentindo-se a mais patética das criaturas. Ri de si mesma e daquela situação ridícula. Ri dele e da porcaria da colher que nem gosto de sorvete tinha mais!
Ah, o casamento... O deles sempre fora formidável! Casaram-se apaixonados, ambos realizados em suas carreiras, ainda jovens e bonitos. O convívio era excelente: dividiam tudo, riam de tudo, pareciam saídos de um comercial de margarina, e o sexo... “uau” a química era perfeita! Bastava um toque e a combustão era imediata - mal podiam se olhar!
Eram, sem dúvidas, um casal perfeito! Tinham um casamento invejável!
Tinham... e mal podiam se olhar...
Quando se pegou pela primeira vez perdida nestes pensamentos, culpou a sogra, o trabalho, a TPM – “precisamos de férias, é isso” – As férias vieram, e foram, e vieram de novo, repetidas vezes – as dúvidas e os culpados também: as crianças, os hormônios da menopausa, da andropausa. A casa: “precisamos redecorar” - o feng shui salvou o meu casamento – dizia a matéria da revista. E a casa teve um arco-íris de cores, um leque de estilos e uma dúzia de endereços. Fizeram terapia, aulas de dança, meditação, medicação!
“Mas tudo bem, isso é absolutamente normal...
Nosso casamento é perfeito!”
- Repetia isso como a um mantra, tentando convencer a si mesma.
Mais tarde, bem mais tarde, ele reclama que ela está com dor de cabeça, novamente – deve ser de tanto que rir - pensa ela, um tanto irritada e outro magoada. Mais cedo, bem mais cedo, ele não era assim...
Achava sexy até a cara que ela fazia escovando os dentes! Tinha que fugir dele pela casa, sempre que se arrumava para uma festa – ela lhe achava tão chato, ele lhe achava tão linda!
Ah, e como ela queria ser “chateada” esta noite!
Acontece que ele ainda a achava “tão linda”... só não entendia porque, sempre que tentava uma investida, ela “parecia” recuar – “Deve ser impreensão minha, só pode! Afinal, ela sempre gostou do meu jeito” - e lá ia ele novamente:
Na mesma hora de sempre, com a mesma mão no mesmo lugar de sempre (mão esquerda no seio direito). Nessa noite não seria diferente. E ela respondia com a mesma frase de sempre, a qual ele estranhamente ainda não havia decorado: “vai devagar amor, preciso de mais clima...”
Clima? Antigamente podia ser inverno ou verão que ela tava sempre “no clima” - ele pensa, mas não fala, só faz uma careta e recolhe a mão – uma careta que, mesmo no escuro ela consegue perceber, sentindo-se “a última” do mundo – o que é traduzido por um longo e profundo suspiro.
Já é madrugada e ela mal dormiu - pensando coisas do tipo “como podemos estar tão perto e ao mesmo tempo tão distantes?” - até que subitamente o corpo dele, ainda dormindo, procura o seu - já é quase de manhã, faz quase uma semana que não transam - ela sorri e se contenta... Aceita o que vem e como vem. E lá vem ele com a boa e velha mão esquerda sobre o seio direito, como sempre foi...
Após o ato, ele adormece – na verdade nem acordou, veio e foi no “modo automático”, o que significa sem muitos beijos ou palavras – ela continua acordada, extasiada pensando “ele não mudou uma vírgula sequer, em todos estes anos e... Nossa! Como é gostoso... isso ainda me mata...”
Quando acorda, o marido já saiu – trabalham em turnos diferentes – ela cheira o travesseiro dele, sorri e se levanta. Vai até o banheiro, toma um longo banho, vistoriando o próprio corpo atrás de algo que mereça levar a culpa, algo que esteja fora do lugar e conclui: “eu é que estou fora do lugar”.
Ao sair, se olha no espelho por um longo tempo – olha-se nos olhos – um momento profundo em que vê muito mais do que gostaria.... e chora...
Chora por não ter mais 18 anos, chora porque ele é tudo o que ela mais ama no mundo, chora por ter um “casamento perfeito” e chora, simplesmente porque gosta de se ver chorando no espelho.