Língua de Trapo
Dona Cigarra estava muito doente e acamada, mas não via a hora de voltar ao seu posto favorito para ouvir os cochichos, os segredos e as fofocas dos transeuntes que ali paravam para um bate-papo. Aquele local estratégico era ponto de encontro. Ela podia ouvi-los, mas ninguém podia vê-la. Ela sabia mais da vida dos outros do que o padre e a Chica do correio. Entretanto, ficar longe da janela era o seu pior suplício.
A bicharada, ao tomar conhecimento dos seus ouvidos, entrou em pânico. Explodiu a síndrome do medo, da culpa. Muito tititi rolou... Ninguém mais parava naquele confessionário ao ar livre. Mesmo doente, acamada, representava perigo, uma bomba relógio. Todo mundo evitava qualquer conversa fiada. Seu pseudônimo correu de boca a boca, ganhou inimizades e atravessou fronteiras, e foi cognominada de Língua de Trapo.
Segredos não eram mais segredos. Vidas estavam em jogo... O fato virou caso de vida ou morte! Era Dona Cigarra um documento secreto que muitos desejavam destruí-lo; era o arquivo vivo que devia ser morto.
Ao chegar ao conhecimento da população a notícia de que ela sabia demais da vida dos outros, formou-se muita desconfiança entre os casais, parentes, amigos, e essencialmente, políticos.Toda a comunidade falava sobre o assunto. Tinha gente oferecendo muito dinheiro para que ela abrisse a boca... A curiosidade de alguns e o medo de outros transformaram a cidade em pé de guerra.
As madrugadas naquela cidadezinha nunca mais foram às mesmas... A insônia tomou conta dos manda-chuvas. Teve colarinho branco que ao saber da enfermidade da fofoqueira, acendeu velas para o chifrudo do inferno e lhe prometeu a vida em troca da morte dela. Outros passaram a assistir à missa assiduamente, fazendo promessas e pedindo para o santo favorito o fim da faladeira. Tremiam ao ouvir o sermão do padre Galo, que dizia:
- “As paredes não são surdas. As frestas das janelas têm olhos grandes. A justiça tarda mas não falha.”
E, sempre finalizava o sermão, dizendo:
- “Aqui se faz, aqui se paga...”.
Quem “devia no cartório”, saía cabisbaixo, coçando a cabeça, nervoso, intranqüilo. A maioria chegava a errar o caminho de casa. O estresse virou quase uma epidemia.
Seu Grilo estava morrendo de medo que o seu compadre, Cavalo – o matador – descobrisse o seu romance com dona Égua Mocotó. Seu Cavalo já havia lhe prestado muitos favores, e sempre lhe dizia:
- Morro de amores pela minha potranca, compadre. Se alguém ao menos atrever-se a olhá-la com segundas intenções, passo fogo, sem dó e sem piedade. Sou ciumento e só de pensar numa coisa dessas, arrepio.
Ao ouvir isso, seu Grilo morria de medo por dentro, e sempre dava um jeitinho de fugir do assunto e ir embora.
Dona Mariposa estremecia dos pés à cabeça só de imaginar no escândalo que seria, se o seu segredo fosse descoberto. Bonita, charmosa, bem casada, por onde passava atraía a atenção. Mas, se tornasse público sua verdadeira opção sexual, seria uma tragédia na sua vida, seria abandonada pelo esposo – juiz. Viraria chacota na boca do povo... Apaixonada pela afilhada, a Borboletinha, estava tendo pesadelos toda a noite: "Via-se enforcada em praça pública sob vaias da multidão."
Seu Morcego, que nunca gostou de viver zoologicamente correto, conhecido como o vampiro da vila, era cúmplice de seu instinto sangrento. Nunca desejou viver de outra forma. Sem o prazer do sangue, sua vida seria de morte. Seu hobby era se embebedar com o “vermelhinho” das virgens. Disto não abria mão em hipótese alguma. Já havia degustado de todo tipo... Mas era a filha do delegado – a Pachorra – sua paixão. Este era o seu martírio.
Seu Crocodilo era o mais preocupado. Estava tendo um caso com a Dona Elefanta. Desse romance nasceu um bastardo... Se o seu melhor amigo descobrisse a tal traição era morte certa! Não iria sobrar nem pensamento para contar história. Ele fez uma promessa para o Fênix – o deus imortal da bicharada, e disse-lhe:
- Se permanecer em secreto o meu segredo, prometo nunca mais “mexer” com a minha amada. Acenderei duzentas velas todo dia de finado, para todos os santos.
Seu Pica-pau era famoso por ser bonito, inteligente, rico e bem dotado. Estava sofrendo muito, tinha medo de morrer. Era amante da cunhada. Se o irmão descobrisse, seria o fim... Doente por sexo, descobriu na cunhada suas fantasias... Não sabia como parar. Já virara vício. Não queria perder nem a vida, nem a amante e nem o irmão. Só via um jeito de acabar com o seu sofrimento, era providenciar a queima de arquivo.
O insuspeito, o santo, o representante de Fênix nessa comunidade era o pedófilo, o sem-vergonha, o tarado que molestava os garotos dentro da sacristia. Assediava as crianças e as conquistava com docinhos, balinhas, promessas inúteis e outras bobagens. Era do tipo que dizia:
- Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Seu segredo era o mistério que nunca devia ser descoberto de jeito nenhum. Tinha ódio de morte da linguaruda.
Dona cigarra teve em sonhos a visita do seu santo protetor, o Vaga-Lume, das causas urgentes e quase impossíveis, que lhe disse:
-Sua cabeça está a prêmio. Sua vida está por um fio de navalha. Seus inimigos querem vê-la morta. Estão fazendo pacto com Fênix e o diabo.
Em sonhos, fez a seguinte promessa para o santo:
- Se eu não morrer, nem perder a minha voz, prometo que nunca mais vou ficar na janela ouvindo a conversa dos outros. Serei cega, surda e muda. Serei um túmulo. Tudo que sei, será enterrado junto comigo.
O santo, saindo de fininho, foi ter com o seu superior, e disse:
- Ela prometeu não ouvir mais a conversa dos outros, vai ficar de “bico calado”, trancará os segredos no cofre do seu caixão.
Seu superior disse-lhe:
- Não acredite... Uma vez linguaruda, sempre linguaruda. Árvore velha, depois que começa cair às folhas, não tem mais cura... A goela da fofoqueira é como uma porta sem chave.
D. Cigarra acordou, o perigo de morte continuou.
O anjo dos devaneios, da mitologia zoológica – o Miquinho – resolveu aparecer em sonho para os aflitos; os inimigos da linguaruda, e, para cada um, falou:
- Desfaça a promessa contra a Dona Cigarra, ela está arrependida. Prometeu para o seu Anjo nunca mais importunar ninguém. Que de agora em diante será cega, surda e muda; levará os segredos de todo mundo para o túmulo. Reflita comigo: Sem o seu canto afinado esta cidadezinha perderá a graça, será triste, monótona... A vida perderá um encanto.
Todavia, de nada adiantou a solicitação de Miquinho, sua aparição foi inútil, tarde demais. Um dos aflitos já havia dado cabo à vida da linguaruda. Foi um crime nefasto, mitológico. Fez o serviço profissionalmente, sem deixar vestígios. Arrependimento? Hum!... Nem pensar! Quando veio a público o seu falecimento, foi um alívio para o time dos perturbados. O criminoso estava orgulhoso consigo mesmo, pois agora poderia viver em paz com a amante e o irmão.
No velório, o coro de lamentação era um só: Coitadinha! Era tão boazinha! Pobrezinha!
O cientista maluco – seu Gambá – queria lhe tirar a língua para clonar... E extrair do seu DNA os segredos misteriosos e desvendar quem foi o criminoso.
Dona Vespa, ao pé do ouvido do seu Sabiá, dizia:
- Um velório, dois caixões e um corpo. Não é esquisito, compadre?
Ele respondeu-lhe baixinho:
- Não!... Um é para o corpo desengonçado e o outro é para a língua ferina.
Dona Vespa adiantou-se, dizendo:
- Bem que a avisei que, quem fala demais dá bom-dia a cavalo! No entanto, ela sempre debochou de mim, ignorava-me e dizia:
- Você tá mortinha de inveja, de curiosidade, mas não vou lhe dizer nada, não; nadinha mesmo.
E, acrescentou: Se ela não escutasse os segredos, morreria de tédio... A sua alegria era saber da vida dos outros."
Seu Sabiá finalizou, dizendo:
- Que vá a língua e fique a lição, não é comadre?