Se eu morresse amanhã
Sabe, eu pensei que iria morrer. E foi um sentimento que se apossou de uma forma tão intensa que já não mais sabia o que fazer; se eu vivia tudo rápida e loucamente ou se degustava o pouco que tinha acumulado com doses mais suculentas...
Tudo porque eu iria morrer a qualquer momento e já não podia escolher coisas que normalmente escolho: a viagem ainda a fazer, o novo filme do Harry Potter que vai estrear, os CD´s que ainda não ouvi, nem mesmo os livros que não li... Parecem coisas tão bobas e insignificantes, mas na hora não eram, pareciam até mesmo imprescindíveis e já me via negociando com a morte algo assim: eu posso voltar de vez em quando só para ler, ouvir, viajar... essas coisas.
Foi então que me toquei que morrer implicava em nunca mais tocar em você, vê-la - ao menos fisicamente - então pirei. Bateu um desespero tão grande, mas tão grande, que precisei parar tudo e meditar. Conversei com Deus e implorei que me deixasse mais um pouco, que eu melhoraria como ser humano, que faria as coisas mais certas, que amaria mais a todo mundo, que não me importaria com o que falam de mim, que ignoraria as invejas que sentem (e não entendo por que sentem isso), que viveria mais, que voltaria a correr, jogar vôlei, que veria os amigos que não vi nunca mais, que visitaria a velha namorada, que amaria mais, muito mais, mais, mais...
E me vi chorando como quem pede perdão pelas coisas que deixou de fazer, pelos lugares que não viu e por todo o bem que evitei ou esqueci, ou sei lá, eu nem mesmo sei ao certo o que escrevo, penso ou imagino.
E chorei muito, mesmo enquanto falava com você ao telefone. Saudades talvez, medo talvez. Medo de errar de novo, de desperdiçar a chance que estava ganhando novamente, pois entendi que Deus me dava o sinal positivo e me dizia: Eu acredito em você, não me decepcione. E eu não conseguia traduzir isso em palavras que entenderia, nem em atos. Ou seja, eu me encontrava perdido novamente.
Lembrei-me nessa hora de meu pai, de meu avô, referências que tenho de quem já se foi e que ainda vivem na minha lembrança. Queria muito saber como eles estão, onde estão e como foi tudo, a passagem, a chegada, a adaptação... Eu tenho muito medo do que vou encontrar um dia sabe lá onde, mas eu sei que vou chegar e vencer, como sempre venci.
Então, em um sonho eu desencarnei.
Mas morri de verdade, senti a morte tão forte, mas tão forte que realmente pensei que havia morrido. Observava meu corpo sendo velado e algumas pessoas ao lado. Não me recordo do rosto de ninguém, não sei quem estava lá. Só me lembro de minhas mães: sim eu tenho duas mães e não me perguntem como. E elas me viram - como, se eu estava morto? -, mas, sim, repito, elas me viram. Vieram até mim com os olhos marejados e peguei suas mãos e coloquei-as uma sobre a outra. Lembro-me de ter dito que a ligação entre elas era longa, de muitas vidas e vidas. Por que estavam juntas de novo? Isso não me foi permitido saber, nem revelar.
Andei e fui ver meu corpo. Velei a mim mesmo por instantes que me pareceram anos. Não vi minha vida passando como um filme. Nem me passou essa idéia pela cabeça. Ouvi, sim, a voz de um protetor falando comigo e me acalmando, deixando-me em paz.
- É isso a morte afinal? - pensei comigo mesmo -. Onde estão os amigos e os familiares que vêm me buscar? Ninguém liga para mim?
Fui ficando triste. Daí, ouvi a voz de meu avô e virei menino outra vez, mexendo nas suas coisas em seu quintal. Senti-me seguro, como quem diz: agora, sim, eu posso morrer, tem alguém que conheço ao meu lado que vai me levar para onde tenho de ir.
Foi quando ouvi:
- Chegou a hora!
E meu corpo espiritual começou a jornada. Fui sendo literalmente tragado e levado embora. Estava bem, estava muito bem, em paz, estava feliz, nem me tocava que não iria mais ver minhas afilhadas, nem minha família, só queria ir, e ir, e ir...
No meio do caminho, se é que ele tem meio, lembrei-me de que não via nenhuma luz e por um instante fiquei chocado. Cadê a luz? Cadê a luz? gritava.
A luz veio e de forma tão forte, mas tão forte que acordei num sobressalto. Abri meus olhos, olhei minha estante de livros, ouvi os sons da manhã, os pássaros, os carros, a vida. Não sabia se estava vivo. Não sabia mais nada.
Poderia levantar e ir chamar alguém, mas o medo de que não me ouvissem era tão grande, que resolvi ficar na cama e esperar, esperar o dia raiar com mais intensidade, o sol bater na minha janela e todo mundo despertar.
Na verdade eu queria me mostrar e verificar se me viam realmente. Aí, então, eu sossegaria e constataria a verdade: ainda estava vivo!
E foi assim que aconteceu, eu morri de verdade e senti a morte. E posso dizer que foi ótimo, que perdi o medo, mas que ainda me apavora deixar tudo isso aqui. Ainda não é a minha hora, e nem o meu momento. Não tive a minha hora da estrela, nem os meus quinze minutos de fama, como bem previu Andy Warhol.
Fiquei com isso na cabeça, consultei todos os dicionários de sonhos, tarô e tudo o mais. Eram todos dúbios e diziam coisas boas e ruins sobre esta experiência.
Eu prefiro acreditar em minha intuição e se-guir em frente. Continuar a construir coisas boas e viver.
E ler tudo que eu quiser ler...
E ouvir todas as músicas que puder...
E viajar para todos os lugares do mundo e fora dele...
E beijar muito todos que amo...
E olhar nos olhos e brincar com a vida...
E esquecer-me das coisas ruins através das quais a vida nos põe à prova, para nos testar mesmo, eu diria.
E ignorar os maus e falsos amigos, rezando para que enxerguem a verdade, mesmo que ainda vejam por detrás dos véus da ignorância. Pois disto aqui a gente não leva nada, nada, nada...
E por mais apegado que seja a tudo isso, sei que irei como vim, sem lenço, nem documento. Apenas com minha história de vida, das outras e desta daqui.
Pagarei altos preços por tudo? Sim, pagarei. Por isso minimizarei tudo e abolirei os excessos.
Continuarei errando? Sim, continuarei. Sou humano e não conheço toda a verdade. Mas continuarei agindo pelo coração, acho que assim erro menos.
Agora, se eu morresse mesmo amanhã, só iria querer ver o sol se pondo de novo, na cidade de Jundiaí. Sempre foi e sempre será o por-do-sol mais lindo que já vi, não me importam as outras paisagens deste mundo, importa-me onde estou e o que vivo. E aqui é onde viverei, nas tardes bonitas ao pôr-do-sol, como diz Haydeé Dumangin Mojola. É como penso e pensarei.
Se eu morresse amanhã, deixaria saudades e levaria muitas, mas teria a certeza de ter amado muito, muito mesmo. E pediria:
- Não fiquem tristes por mim! Acendam as fogueiras e cantem com a voz interior. Eu estarei sempre em vocês, como estarão sempre em mim. Sabem por quê? Continuarei vivo, pois a alma é imortal.
Texto publicado no livro Muito Mais, de Márcio Martelli, Editora In House (2007).